“Reparações coloniais? São as pessoas erradas a indemnizarem as pessoas erradas”
A Índia é agora o mais populoso país do mundo e tem uma população muito jovem, comparada à da China. A Índia tem capacidade para investir numa educação com qualidade para os seus muitos milhões de jovens e, assim, transformar a demografia numa clara vantagem e tornar-se num país mais desenvolvido?
A sua observação é, sem dúvida, correta. A Índia e a China têm hoje uma população semelhante, cada uma perfaz à vontade 16 ou 17% da população mundial. A juventude na Índia é uma parte muito significativa dessa percentagem e continua a aumentar. A educação é um esforço muito grande, especialmente para essa população jovem, mas é também, potencialmente, um grande impulso para a ascensão da Índia como uma sociedade em desenvolvimento. No entanto, existe um grande desafio, que é o facto evidente de a Índia se estar a afastar cada vez mais de ser uma democracia liberal. Isto nem sempre é visto claramente na Europa, nos Estados Unidos ou no Ocidente em geral, que está muito alerta para o afastamento da democracia na própria Europa, por exemplo na Hungria, mas também em muitos outros países, ou na China, claro, ou na Turquia, ou no Brasil. No entanto, no que se refere à Índia, há uma estranha relutância em reconhecer que a democracia está sob uma grande ameaça no país. Neste momento, creio que estamos na terceira fase das eleições mais importantes na Índia. Portanto, há um grande potencial para a educação, mas a questão do futuro da democracia na Índia é igualmente importante e devemos ter isso bem presente.
Está a criticar Narendra Modi e o BJP, o partido nacionalista hindu. Pensa que o atual Governo indiano está realmente a tentar transformar o país numa nação de religião hindu e de língua hindi, sem respeitar a grande diversidade da Índia?
Penso que a prova disso já tem vindo a ser evidente nos últimos cinco, se não dez anos. A nossa Constituição tem sido revista em aspetos muito importantes que afetam a cidadania; a nossa comunicação social está agora quase totalmente nas mãos do partido atualmente no poder; o Parlamento é dominado pelo BJP. Portanto, penso que não é uma questão do que pode vir a acontecer, mas sim do que já aconteceu. Ainda fico sempre surpreendido que apesar do enorme fluxo de informação existente na internet e nos dispositivos digitais a situação na Índia ainda não esteja a ser vista como é na realidade. As pessoas continuam a falar sobre alguma preocupação em relação às tendências autocráticas de Modi, em alguns perigos para a constituição, etc., mas isso é história, as coisas já aconteceram.
Mas ao mesmo tempo quando falamos de eleições na Índia vemos que, por exemplo, o Partido do Congresso assenta sempre na liderança da mesma família, os Nehru-Gandhi, que tem uma espécie de atitude dinástica, enquanto Modi, filho de um vendedor de chá, representa, de certa forma, o cidadão comum. É essa a razão para os eleitores se sentirem atraídos por Modi?
Não há qualquer dúvida de que Modi tem um apoio significativo do eleitorado indiano, mas os números podem ser enganadores. Se olharmos pormenorizadamente para o apoio ao BJP estado a estado, com cuidado porque é um país muito grande, vemos que é um pouco como com Trump, são cerca de 30%. Não é uma maioria avassaladora, mas é um grande número. Prevê-se que nas eleições vá ganhar mais de 400 lugares dos cerca de 560, mas existem muitas dúvidas em relação a isso. Contudo, mesmo se formos muito cautelosos em relação aos números, não há forma de negar que Modi reúne muito apoio popular, mas o mesmo é verdade para Trump, para Orbán, etc. Agora, esse apoio tem de ser explicado, mas não pode ser tratado como uma demonstração conclusiva de que essa pessoa está comprometida com a democracia. O facto é que esse apoio pode ter muitas razões, incluindo, e isso não deve ser visto como uma questão menor, o total controlo da comunicação social. Essa é uma questão muito preocupante, não só na Índia, mas na Índia é muito significativa.
Voltando à comparação entre a Índia e a China. A China é uma autocracia muito bem-sucedida, a Índia é tradicionalmente uma democracia, mas não tão bem-sucedida do ponto de vista económico. É possível dizer que num país gigante não há vantagens naturais em se ser uma democracia em termos de educação e desenvolvimento da sociedade? O facto de a Índia ser uma democracia pode ser visto como uma desvantagem em relação à China em termos de desenvolvimento?
Sim, penso que isso é verdade. Mais do que isso, penso que o Governo de Modi tem uma inveja imensa da China e da capacidade do Governo chinês fazer o que quer. Por exemplo, se quiser construir uma estrada ou uma autoestrada de milhares de quilómetros fá-lo sem que ninguém faça perguntas. Agora, isso não significa que a China não tenha protestos ou pessoas contra a situação, mas significa que consegue fazer muito mais. Modi adoraria ter esse tipo de liberdade. Na minha opinião, que não é partilhada por muitos, a Índia e a China estão a convergir e estão a fazê-lo de duas maneiras. Uma é que a Índia está a aproximar-se cada vez mais, tanto por desejo como por desígnio e pela realidade, de uma versão indiana da China autocrática; a outra é que tanto a Índia como a China têm um problema e dificuldade em arranjar uma solução para a população em geral, o que é um fenómeno muito ameaçador para ambos os países. Dito isto, penso que há uma razão para ter esperança pelo lado indiano, em relação ao lado chinês não posso dizer muito porque não sou perito, mas a Índia tem uma grande diversidade, uma grande história de realidades locais, seja de castas, religião, língua, etc. É simplesmente muito difícil ter um projeto centralizado. Modi está de parabéns pelo que conseguiu, mas a Índia é muito difícil, é como levar 50 cães a passear, não é uma tarefa fácil. A China percebeu como manter os cães disciplinados. É perigoso pensar em qualquer país, seja a Índia, a China ou qualquer outro como tendo a democracia nos genes. Se pensarmos no exemplo português, no tempo de Salazar as pessoas diriam que a ditadura estava no ADN de Portugal. Hoje a realidade é outra. Isso significa que as coisas mudam e que devemos sempre ser cautelosos. Podemos, por exemplo, imaginar que a Rússia ou a China têm a possibilidade de se tornarem países democráticos. Dizemos que a Índia sempre foi democrática, que a democracia lhe está no sangue, mas Modi mostrou que se pode ter Gandhi, Nehru e toda a gente no sangue, mas também se pode fazer uma transfusão de sangue de outro lado qualquer, e ele tem tido muito sucesso a demonstrar isso. Isto dá uma certa abertura para o otimismo porque significa que mesmo Modi não está garantido, pois as coisas podem mudar. Nehru e a sua filha, Indira Gandhi, são um bom exemplo, tal como Mahatma Gandhi antes deles, porque depois de terem sido adorados religiosamente foram desacreditados. Portanto, as coisas podem mudar.
A China criou o Ranking de Xangai das melhores universidades do mundo e mesmo pelos parâmetros chineses as melhores universidades são as americanas, com duas britânicas também no top ten. Poder-se-á dizer que as democracias e as sociedades liberais, nomeadamente as anglo-saxónicas, desenvolveram uma vantagem natural em termos de educação, assim, também em termos de desenvolvimento de economias competitivas?
Eu diria que, sem dúvida, a educação superior americana ainda não tem rivais no mundo. Toda a gente quer ir estudar para os EUA se puder, quer seja ciências empresariais, tecnologias da informação ou mesmo ciências sociais. Por exemplo, na Índia existem 200 novas universidades privadas que lutam para se tornarem universidades de classe mundial, querem ser como Harvard, como Oxford, etc. As universidades americanas têm uma combinação de empreendedorismo, de liberdade relativa em relação ao Estado e à igreja, de filantropia. Estes fatores, em conjunto com outros fizeram da educação superior americana uma potência mundial. Contudo, se olharmos para o quadro geral das universidades americanas, que são milhares, vemos que muitas enfrentam enormes crises, que levam a fusões, colapsos financeiros. Toda a gente fala de Harvard, Yale, Stanford, mas a realidade é muito maior e mesmo Harvard não é invencível, nem Yale, nem Princeton, nem nenhuma outra. Diria que muitos de nós, que estávamos ou ainda estamos profundamente envolvidos no mundo das universidades americanas, vemos que existem múltiplas crises neste momento. Portanto, ninguém pode garantir que os EUA mantenham o seu domínio, pois a instabilidade é grande. Os EUA têm problemas, mas outros países têm problemas ainda maiores - a China, a Rússia ou qualquer lugar na América Latina, ou mesma na Europa. A grande questão é: uma vez que a Europa tem Oxford, Cambridge, a London School of Economics, etc., as universidades gregas, a de Bolonha que foi criada no século XI, o que é que aconteceu? Estavam distraídos?
Vamos falar da Europa, neste caso da União Europeia pós-Brexit, uma vez que o senhor está agora baseado na Alemanha depois de muitos anos a ensinar nos EUA. A Europa fala, às vezes, de se tornar militarmente mais forte, mas, ao mesmo tempo, construiu hoje a sua imagem no mundo em termos de promoção de ideais como a democracia, direitos humanos, Estado social, combate às alterações climáticas, etc. Pensa que a Europa tem condições para ser uma espécie de farol do mundo?
Penso que sim e defendi firmemente esta opinião nos últimos sete ou oito anos em que tenho vivido na Europa. É fácil ser-se crítico da Europa se se estiver em Nova Iorque ou Chicago, mas se estivermos cá acabamos por perceber duas coisas. Uma é que os ideais continuam vivos, mesmo em países como França onde a extrema-direita é muito forte. Eu, que vivo na Alemanha, vejo a complexidade da posição da Europa muito claramente. Portanto, quando Olaf Scholz viaja para a China, não o faz por lazer, fá-lo porque a realidade o exige. A Europa está entre estes dois gigantes, a Rússia e a China por um lado, e os Estados Unidos por outro. É muito difícil a posição da Europa e eu acho que ela está a fazer um bom trabalho na gestão da geopolítica global, mas também do mercado. Existe algum controlo, não se podem aumentar as rendas de um dia para o outro, por exemplo. O Estado social continua vivo e a contradição entre isso e ser-se relevante no mercado de hoje faz com que a Europa seja liberal, mas ao mesmo tempo, não desista dos ideais, quer seja em termos de mercado, de desigualdade e justiça, ou de migrações. Continuo a sentir que existe um debate genuíno sobre todos esses temas. Os ideais mantêm-se, portanto, nesse sentido, acho mesmo que a Europa tem a capacidade de ser aquilo que já foi em 1789. Do outro lado do Canal da Mancha, a Grã-Bretanha está simplesmente a desfazer-se, está num caos, na minha opinião. Depois, do lado asiático, a Índia, a China, a Rússia, penso que em todos estes casos há um potencial para revisitar, não para repetir a história do século XVIII.
O professor tem a experiência de viver em várias sociedades diferentes, pois nasceu na Índia, formou-se nos EUA, vive na Alemanha. Por vezes falamos sobre o Ocidente versus o Oriente, o Ocidente versus o Sul Global, durante a Guerra Fria era o Ocidente versus o Bloco Comunista. É possível dividir o mundo desta forma ou é simplificar demasiado?
Todas as simplificações têm um objetivo, dependendo do contexto em que são úteis. Se eu quiser falar do grande comércio global, posso usar um termo como o Ocidente, ou o Oriente, ou o Sul Global. Agora, no Sul Global, se analisarmos os BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul… - são completamente diferentes entre si. Juntaram-se de alguma forma, em parte deliberadamente para verem se tinham alguma coisa em comum e como tinham de lhe dar um nome chamaram-lhe BRICS. É tudo uma questão de contexto. Quando falamos de eleições na Índia é completamente inútil falar do Sul Global ou do Ocidente. Portanto, eu diria que nenhuma destas denominações são perfeitas ou permanentes, são todas uma questão de perspetiva, como uma câmara em que se aproxima ou afasta a imagem. Mesmo as grandes diferenças entre o Ocidente e o Leste têm algum significado. Vejamos Putin, por exemplo, seja qual for a análise que façamos, ele tem uma ideia, a ideia de que existe uma Europa iluminada que o quer realmente engolir, para ele o Ocidente é uma realidade. Assim, quem sou eu para dizer que o Ocidente e o Ocidente na Ucrânia é uma ilusão? Não é, o Ocidente fornece as armas à Ucrânia, não é imaginação de Putin. Outro exemplo, houve eleições recentes nas Maldivas que foram totalmente contra a Índia. Porque é que o presidente das Maldivas está agora desejoso de estabelecer relações amistosas com a China e afastar-se da Índia? Essa questão não tem nada que ver com o Ocidente, está confinada ao Oceano Índico e à Ásia. Portanto são conceitos que dependem do que é que estamos a tentar descobrir.
Alguns historiadores na Índia dizem que a era da globalização começou com a chegada de Vasco da Gama a Calecute há mais de 500 anos. É possível dizer-se que o mundo ainda está a viver o impacto da colonização europeia? Ainda há um impacto profundo causado por esse período de dominação europeia que explica também todas as tensões no mundo?
Eu penso que ainda há muito para ser debatido acerca do projeto imperial europeu, e a razão principal é perceber-se como é que esse projeto se relaciona com as ideias do iluminismo, porque ambos vieram da mesma fábrica e foram exportados para todo o mundo. Como é que essas duas coisas funcionaram em conjunto? No entanto, eu vejo que o mundo ainda vive muito com a herança da era imperial europeia. A história da descoberta do chamado Novo Mundo, que junta aventureiros portugueses e espanhóis, religiosos, etc., é uma história muito importante que é muitas vezes enterrada dentro da história do Iluminismo do século XVIII. Assim, vários colegas meus e eu próprio dizemos que é essencial olhar para o período entre os anos 1500 e 1800 como uma fase inicial muito importante. Depois de 1800 quando a Grã-Bretanha, a França e outras potências imperiais conquistaram o resto do mundo, a lógica é outra. No caso de Portugal, especialmente, e um pouco menos no de Espanha, há uma continuidade de 500 anos que quase que encobre o facto de haver duas fases diferentes - uma que é monárquica e da conversão religiosa, etc. e outra que é industrial, do trabalho. Ligar as duas fases pode ser um pouco desafiante, mas no geral a história desde Calecute até hoje é, sem dúvida, muito relevante num lugar como a Índia. Por exemplo, o facto mais persistente da política indiana é essa ideia da casta que é uma palavra obviamente portuguesa. Nós temos uma história e é, sem dúvida, muito importante saber como interpretá-la, como compreendê-la, como não a exagerar e como não a tornar uma desculpa para muitos problemas.
Há um debate em Portugal agora sobre o pagamento de indemnizações às ex-colónias, como uma espécie de compensação. Isso faz sentido para si, esse tipo de justiça histórica? Há pessoas que contrapõem que Portugal também foi colonizado pelo império romano, que os próprios reinos africanos estavam envolvidos no comércio de escravos…
Eu sou cauteloso em relação a essa questão das reparações, por duas razões. Em primeiro lugar, as pessoas no poder em Portugal neste momento não são as mesmas da época dos acontecimentos e, ainda mais importante, as pessoas que vão receber essas reparações não fazem parte das mesmas formações estatais. Atualmente, de ambos os lados existem Estados-nações e quando todas essas coisas da era imperial aconteceram foi antes da existência desses Estados-nações. Portanto, quem é que vai fazer reparações a quem? Outra questão é que todo este assunto das reparações aos colonizados é um produto da era dos direitos humanos, que é uma ideia de meados do século XIX e consagrada em 1948 pelas Nações Unidas. É muito difícil levá-la retroativamente para os séculos XV, XVI, XVII, XVIII porque irá criar distorções sérias sobre a quem é que se está a pedir desculpa, a quem é que se está a fazer reparações, quem é que está a ser compensado. E isso é válido para os dois lados. São as pessoas erradas a indemnizarem as pessoas erradas. Portanto concordo que é importante lidar com a história da exploração do império, da escravatura, do roubo de tesouros culturais, mas no que toca a reparações entre Estados contemporâneos já não tenho tanta certeza que seja essa a resposta correta. Podemos ter, por exemplo, uma espécie de banco internacional do património, do tesouro que seja instituído em nome da humanidade, um pouco como as Nações Unidas. Para mim, não faz muito sentido, por exemplo, mandar coisas de Lisboa para Goa ou vice-versa.
O Ciclo de Conferências “Futuros da Educação” decorre no Auditório Emílio Rui Vilar, na Culturgest, às 15h00 de Lisboa (com transmissão em direto no canal YouTube da UNESCO Brasil - 11h00 em Brasília). A sessão conta com moderação de António Sampaio da Nóvoa, doutor em Educação e em História.