“Não são as esquadras de ‘pedra e cal’ que produzem segurança. São os polícias e os meios”
O superintendente Luís Fiães Fernandes, 57 anos, lidera o Comando Metropolitano de Lisboa (COMETLOS) desde outubro passado. Foi diretor do Departamento de Sistemas de Informação e Comunicações, diretor do Departamento de Armas e Explosivos e oficial de ligação do MAI na Reper (Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia). Licenciado em Ciências Policiais, é Mestre em Estratégia.
Começando pela equiparação ao Suplemento de Missão da Polícia Judiciária. Como comandante do maior comando do país, qual é a expectativa que sente dos seus policias?
Penso que toda a gente compreende que o exercício da profissão de polícia tem associado um conjunto de condições que não se verificam em outras profissões, como o risco, a insalubridade e a penosidade, as quais fundamentam a atribuição do subsídio.
É uma profissão que tem características especiais. É por isso natural que os policiais tenham expectativas de que o reconhecimento destas condições seja feito através de uma melhoria da sua remuneração. Não só por causa de tais condições, mas também pela importância da polícia no funcionamento da democracia.
É uma expectativa legítima e justa, que já foi reconhecida por S. Ex.ª o Presidente da República e pelos partidos políticos.
O sr. Comandante do Porto disse-nos que se não fosse encontrada uma solução ia ser muito difícil manter os ânimos serenos. Sente isso? Qual é a mensagem que tem transmitido aos seus homens e mulheres?
Neste momento suponho que estão reunidas as condições para que as negociações cheguem a bom porto. Enquanto comandante do Comando que tem perto de 30% de todo o efetivo da PSP, cerca de 6500 operacionais (isto é, os polícias com que realmente posso contar para desenvolver operações, para o policiamento de visibilidade, etc.) digo que os polícias, conscientes do reconhecimento generalizado, têm de responder com responsabilidade.
Porque precisam de obter o apoio e o reconhecimento de todos - dos cidadãos, do poder político - e porque sabem que estão sujeitos a um quadro ético, deontológico e disciplinar que lhes impõe um comportamento profissional responsável e, sobretudo, sabem qualquer manifestação pública tem sempre de ser exercida dentro dos limites da lei.
Os polícias são profissionais aptos a enfrentar os vários desafios que se colocam num Comando complexo como este. Só para dar um exemplo, em 2023 tivemos de responder a cerca de 400 incidentes diários, entre crimes, contraordenações e participações diversas.
É um número enorme. Estamos a falar de eventos que vão desde a simples resposta a um problema de ruído de vizinhança, até a incidentes tático-policiais que envolvem elevados graus de violência, como foi, por exemplo, o caso da nossa intervenção no Centro Ismaili.
Em todas estas situações, os cidadãos esperam da polícia um comportamento profissional, respostas céleres e estribadas na lei e a polícia, por seu lado, sabe que não pode falhar, pois por vezes, é a intervenção da polícia que faz a diferença entre a vida e a morte.
Falando em desafios, quais são os que elenca como prioritários?
Um dos primeiros é o crime e a insegurança gerada pelo crime e pela violência. O crime mudou. No passado, o crime era cometido com recurso, a maioria das vezes, a meios rudimentares e era de natureza essencialmente nacional.
Hoje, enfrentamos crimes complexos, que são cometidos com recurso a tecnologias sofisticadas, como a encriptação, e que normalmente estão associados a redes organizadas, de natureza transnacional, e isto é um dos primeiros desafios.
Mas isso não são crimes da competência da Polícia Judiciária?
Não é isso que está em causa. A investigação de um simples furto de oportunidade pode revelar que o objeto furtado acabou a ser transacionado num mercado ilícito digital que, por sua vez, é controlado por uma rede transnacional.
O tráfico local de droga, por exemplo, faz parte de mercados ilícitos internacionais, controlados por organizações transnacionais, algumas policriminais, com elevada resiliência e complexidade. O ponto é que atualmente não se pode olhar os crimes como eventos isolados de todo um contexto transnacional.
Outro dos desafios é a mudança do paradigma da simples reação para o paradigma da proatividade preventiva. Não é possível voltarmos a centrar o nosso policiamento na simples reação. Hoje, apesar da componente reativa estar presente, o policiamento é sobretudo orientado para a prevenção do crime e para o reforço do sentimento de segurança, baseado em técnicas de visibilidade e de proximidade com os cidadãos.
Um terceiro desafio é que a produção da segurança, atualmente, já não é exclusiva da polícia. A polícia produz segurança através da sua participação em redes de atores como, por exemplo, a segurança privada.
Um outro desafio coloca-se na forma como a polícia define os seus objetivos. A polícia tem, cada vez mais, de estar atenta às necessidades dos diferentes grupos da sociedade, porque os mesmos querem, exigem, ter uma palavra sobre tais objetivos e sobre as formas de prossecução dos mesmos. O diálogo com a comunidade é uma necessidade constante.
O público exige saber o que é que a polícia está a fazer, e pede explicações. Esta realidade entronca com o reforço dos mecanismos de fiscalização, interna, externa, nacional e internacional, da polícia. Nunca como hoje, a polícia teve a sua ação tão escrutinada, o que deve ser visto como um claro reflexo da maturidade da nossa democracia e um garante do respeito dos direitos dos cidadãos.
Um último desafio é constituído pela tecnologia, especialmente pela tecnologia de duplo uso, que pode ser utilizada para cometer crimes, com crescente grau de sofisticação, tornando a sua prevenção e combate cada vez mais difíceis.
Quanto à criminalidade em Lisboa, as informações que estão já publicadas indicam que houve um aumento, mas menor do que a média nacional. O que aumentou mais e qual é a vossa interpretação?
Em 2023, na criminalidade geral, tivemos um aumento de 5% relativamente ao período homólogo. A criminalidade violenta e grave, está estabilizada, apresentando uma variação de 0,5%.
A criminalidade geral, apesar de ter aumentado, ainda assim está dois pontos percentuais abaixo dos 7% de aumento que se registou a nível nacional pela PSP e está três pontos percentuais abaixo dos 8% de aumento da criminalidade nacional em 2023. Aliás, o COMETLIS registou em 2023 menos 6% do que a criminalidade registada há 10 anos, em 2014.
É de notar que este Comando regista cerca de 18% de todo o crime registado em território nacional, e 40% de toda a criminalidade registada pela PSP. Os crimes que mais aumentaram em 2023 foram a burla informática/comunicações, as outras burlas, a violência doméstica, o furto em veículo motorizado, as ofensas à integridade física simples e a condução sem habilitação legal.
E nos crimes violentos?
Os crimes violentos que registaram maior número de denúncias foram o roubo na via pública (2387 crimes), mas que apresentou uma descida de 2% relativamente a 2022, e o roubo por esticão (717 crimes), que apresentou uma subida de 1% relativamente a 2022.
Em termos de número absoluto, quantos casos de burla informática é que vocês registaram?
Foram registados 6263 crimes de burla informática/comunicações, o que tem um peso relativo de 1,72% de todo o crime registado no Comando.
Qual é o total de crimes que registaram no COMETLIS?
Registámos, no ano de 2023, 67 840 crimes. O índice criminal é de 3408 crimes por 100 mil habitantes, abaixo dos 3554 por 100 mil habitantes, a nível nacional.
Há seis meses foi anunciado um plano de prevenção e visibilidade para a Área Metropolitana de Lisboa que visava conseguir policiamento nas ruas. É um plano que está previsto na Estratégia Integrada de Segurança Urbana (EISU) aprovada pelo anterior Governo e que também previa a criação de “esquadras do cidadão” em juntas de freguesia. Em que ponto está este plano?
O plano está em execução e tem como objetivo responder à necessidade de prevenir o crime e reforçar o sentimento de segurança dos cidadãos, através da gestão integrada de meios e de valências policiais. Na sua base está a análise sistemática dos riscos de modo a permitir abordagens diferenciadas e dinâmicas, de acordo com os níveis do risco estimado.
Este plano é operacionalizado através de um programa de policiamento que tem três vertentes. A vertente da visibilidade, pela presença dos polícias nas suas várias valências, nos locais e horas com maior concentração de pessoas, como é o caso da Avenida da Liberdade, ou o Rossio, etc..
A vertente do policiamento dirigido à prevenção e combate de determinados crimes, como o tráfico de droga ou furto do interior de veículos, com recurso a várias valências e instrumentos legais, como é o caso das operações especiais de prevenção criminal. E a terceira vertente, a resposta reativa a crimes em curso.
E as Esquadras do Cidadão?
Neste momento ainda não há decisões. Do meu ponto de vista, qualquer reestruturação do dispositivo deve partir de uma perspetiva integrada, macro e não pontual.
Há um plano para reorganizar o dispositivo da PSP em Lisboa que está na gaveta há 10 anos. Como convencer os autarcas e a população de que não são precisas tantas esquadras...
Não são as esquadras de “pedra e cal” que produzem segurança. São os polícias e os seus meios que respondem aos pedidos de auxílio dos cidadãos e que previnem e investigam os crimes.
Quanto maior o número de esquadras, menor o número de recursos disponíveis para efetivamente policiarem a “cidade”, uma vez que parte dos mesmos terá sempre de ser alocada à segurança das instalações e a atividades de backoffice.
A tecnologia, os sistemas de informação e de comunicações e a mobilidade são fatores que hoje têm de ser tidos em consideração quando se pensa na reestruturação do dispositivo de Lisboa, para além do número e da localização das esquadras.
O próprio conceito de esquadra também tem de ser repensado, bem como o tipo de serviço e de acesso por parte do cidadão à polícia. O atual sistema de queixa eletrónica é um possível exemplo do caminho a seguir.
Para determinados tipos de crime, as pessoas não têm de ir à esquadra. A digitalização vai tornar cada vez menor esta necessidade de deslocação física e, consequentemente, de esquadras, tal como as conhecemos.
Já está a contar com aqueles que vão ter de ficar a tempo inteiro no aeroporto (a partir de outubro deste ano vão ter de ter 50% a tempo inteiro e daqui a um ano os 100%)?
Não. O reforço de recursos para o desempenho das novas funções tem estado a acontecer desde o início do ano. Gostaríamos de conseguir colocar no aeroporto, até ao final do ano, todos os recursos humanos necessários para substituir os nossos colegas da PJ, de modo a que toda a operação estivesse sob o nosso controlo. Já contando com os reforços que têm sido injetados, iremos, se tudo ocorrer conforme esperado, ainda durante este primeiro semestre e estendendo ao segundo semestre, colocar no aeroporto à volta de mais 150 a 170 polícias, dando continuidade à substituição dos elementos da PJ.
Mas para isso não implica ainda a tal reorganização do dispositivo em Lisboa?
Não.
Acabando com esse conceito da “esquadra de pedra e cal”, como referiu, isso não libertaria também elementos suficientes para fazer essa renovação?
Não, não chega para o número de polícias que precisamos para aumentar a visibilidade. Outras medidas teriam também de ser tomadas. O que temos vindo a preparar é a integração horizontal de determinados serviços.
Dou-lhe um exemplo. Uma determinada unidade, para além de todas as outras missões, tem também uma esquadra de trânsito, fragmentando assim os seus recursos por múltiplas valências, o que estamos a planear é a integração dessa valência (trânsito) numa única unidade, neste caso a Divisão de Trânsito.
Portanto, estamos a fazer pequenos ajustes no dispositivo. Outro exemplo, as Equipas de Intervenção Rápida (EIR) são cada vez mais geridas de forma integrada e não de forma independente pelas divisões. Porquê? Porque se os recursos são escassos, temos de alterar os métodos de gestão, temos de inovar.
Não vale a pena estarmos sistematicamente a dizer que temos falta de recursos, isso é algo que já toda a gente sabe e é reconhecido. Face a tal contexto, temos de inovar, de ter novas perspetivas, introduzir novas dinâmicas, e é isso que temos estado a fazer.
Vai resultar de um momento para o outro? Não! É um processo que se vai desenvolvendo. Neste âmbito, a formação é essencial para sermos mais eficientes. Assim, por exemplo, desde o início de fevereiro que temos - com enorme esforço - estado sistematicamente a formar as EIR para terem uma melhor atuação em contextos de pequena desordem pública, de intervenção em determinadas áreas e situações de risco.
Para operacionalizar esse plano de quantos mais polícias é que precisa?
Sem condicionalismo, reforçando a visibilidade, precisaria de cerca de mais 1000 polícias.
Em relação a essas áreas de risco elevado, podemos falar das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) que também estavam como alvo prioritário na EISU. Qual é a sua estratégia aqui do comando para estas ZUS, uma vez que têm uma boa parte delas na vossa área de intervenção?
Na minha opinião, a expressão Zonas Urbanas Sensíveis é muito pouco feliz.
Foi uma criação e é utilizada pela própria PSP, não é?
Não tenho certeza que se possa afirmar que o conceito ZUS seja uma criação da PSP, uma vez que, por exemplo, encontramos uma clara referência a ZUS no artigo 10º da Lei n.º 38/2009, de 20 de julho. Independentemente da origem do conceito, considero que é uma expressão um pouco feliz.
Essas zonas são sensíveis a quê? São todas igualmente sensíveis? É um estado permanente? Sabemos que existe uma escala com indicadores que podem ser usados para caracterizar e classificar as ZUS.
O problema é que tais indicadores não são aptos para a utilização em avaliações do risco, base essencial do modelo de policiamento que defendo. Para tal avaliação é necessário definir um conjunto de variáveis e indicadores que permitam uma avaliação do risco tão objetiva quanto possível.
No caso do COMETLIS, uma das primeiras orientações que dei aos comandantes das várias divisões foi que abandonassem tal expressão enquanto descritor de uma determinada área de atuação e que passassem, de forma sistemática, a avaliar o nível do risco das diferentes áreas do território que está sob a sua responsabilidade.
Porquê? Porque a atribuição do nível do risco vai permitir que a intervenção policial seja executada com a utilização dos recursos, valências, táticas e técnicas adequadas ao nível do risco. Para quê? Para garantir que vamos atuar de acordo com os princípios da adequação, da proporcionalidade e no integral respeito da lei.
Nesse caso, no Município de Lisboa e na periferia mais próxima, quais são as zonas de maior risco?
Vou dar um exemplo para o Centro de Lisboa. Numa determinada noite de fim de semana - e esta é a razão por que falo da avaliação ser sistemática e dinâmica - o Bairro Alto pode ser uma área de risco médio ou de risco elevado.
Pode ser uma ZUS...
Por isso é que não é adequado usar o conceito ZUS. Contrariamente ao conceito ZUS, o nível do risco, de uma mesma área pode variar ao longo da semana e mesmo ao longo do dia.
E que indicadores são utilizados?
Sem entrar em muitos detalhes, estamos a falar, por exemplo, da densidade populacional, do índice criminal, do tipo de crimes mais cometidos em tal área, do tipo de utilização do espaço público e das características do espaço construído, da existência de mercados ilícitos, de grupos organizados, etc.
Trata-se de um conjunto de variáveis e indicadores que podem ser, e esta parte é importante, objetivados e que permitem avaliações do risco adequadas ao policiamento de visibilidade ou reativo, dependendo das circunstâncias.
De qualquer forma, em certas áreas da periferia, sabe que é a origem de muitos dos grupos de delinquência juvenil que têm contribuído bastante para a subida deste tipo de criminalidade, que é uma matéria de muita preocupação. A PSP tem alguma coisa concreta pensada?
A delinquência juvenil não é apenas uma questão policial. A intervenção junto dos jovens tem de ser multidisciplinar e em rede. Parte dos incidentes com maior violência parecem ser consequência de uma cultura urbana de violência partilhada por alguns jovens pertencentes a grupos de zonas diferentes que trocam desafios e provocações nas redes sociais, por vezes com recurso à música (principalmente hip-hop e drill), e que acabam por ter consequências no domínio físico...
Mas não se pode culpar a música por ser instigador de criminalidade...
Não, claro que não. A música é o meio que serve para expressar os desafios, as provocações, a hostilidade e o descontentamento com um certo estado de coisas.
Quando falei, há pouco, sobre a nossa estratégia de intervenção, uma das valências que utilizamos em situações de desordens de baixa intensidade são as EIR e esta formação visa a preparação para a intervenção, que tem de ser bem planeada, muito bem ponderada e consentânea com os princípios de atuação da polícia num Estado democrático.
Uma atuação musculada ou mais uma atuação preventiva? Uma coisa que tem sido criticada, digamos assim, por parte de algumas associações destas comunidades, é que deixou de haver esse diálogo para haver essa proximidade….
Não gosto de falar de atuações musculadas versus atuações suaves. Não se trata disso, uma vez que qualquer intervenção está sempre sujeita às mesmas regras de uso da força. Trata-se de, para cada um dos contextos de risco, ter a atuação com as valências adequadas.
Isto implica que os programas de policiamento de proximidade têm também de estar no terreno, nomeadamente em áreas de risco.
Mas reconhece que houve um desinvestimento neste tipo de policiamento, não é?
Não sei se houve um desinvestimento ou se temos vindo sistematicamente a desvirtuar o policiamento de proximidade, confundindo o mesmo com ação social.
O policiamento de proximidade (ou comunitário), na sua génese, compreende uma dupla vertente: uma vertente de reorganização interna das polícias e uma vertente de serviço ao cidadão. Nesta vertente, a proximidade, no essencial, destina-se a tornar a ação da polícia orientada para a prevenção e mais acessível e sensível às expectativas do cidadão quanto à sua segurança e aos problemas geradores de insegurança.
Jogos de futebol entre polícias e jovens de determinado bairro são iniciativas positivas e uma boa forma de convívio, mas não podem ser confundidos com a proximidade policial, que tem como objetivos de, localmente, prevenir o crime e a insegurança.
Um dos desafios para a PSP, nomeadamente aqui na zona da Grande Lisboa, tem sido lidar com as ações disruptivas dos ativistas climáticos. Foram instaurados 32 processos de crime instaurados, está um julgamento a decorrer. Estas ações não podem ser enquadradas no chamado “terrorismo climático”? Como é que a PSP está preparada para isso?
A PSP vai continuar, independentemente da natureza da causa, e sempre que se registarem disrupções da legalidade, a repor a mesma.
Não comentando a ação de um grupo em concreto, não podemos esquecer que existem suspeitos da prática reiterada de crimes diversos, e que alguns destes suspeitos, com os seus comportamentos, condicionaram a atividade normal de determinadas infraestruturas.
Quanto ao enquadramento de tais comportamentos num determinado tipo legal de crime, o mesmo caberá às autoridades judiciais.
E isto tem, imagino, implicado também uma grande utilização dos vossos recursos, porque devem ter muito mais pedidos de entidades quando há algum evento, para que haja algum tipo de prevenção, não é?
Se os eventos forem privados, a responsabilidade pela segurança do evento é do promotor, que pode recorrer à segurança privada e, numa segunda linha, a polícias em regime de remunerados. Se o evento ocorrer na via pública, o policiamento é planeado de acordo com os cenários relativos a potenciais impactos de ações disruptivas e de crimes na ordem e segurança públicas, independentemente de determinada organização ser ou não especificamente considerada.
Lisboa tem um número sem precedentes de estrangeiros. Além de turistas, também refugiados e imigrantes, cuja fiscalização sobre a regularidade em território nacional passou a ser competência da PSP. Pode fazer um balanço desta fiscalização? Quantas pessoas, por exemplo, já foram obrigadas a regressar aos seus países?
No aeroporto de Lisboa, desde outubro até agora, registámos 819 recusas de entrada em território nacional. Contudo, como assumimos recentemente as novas competências em matéria de controlo de fronteiras não temos dados para comparação com períodos anteriores.
E em ações de fiscalização na rua? Há uma grande falta de locais para alojamento das pessoas que estão a aguardar decisão, não é? A ter de dormir nas ruas, no aeroporto...Aquela imagem destas pessoas a dormir no aeroporto na Zona Internacional.
A PSP assumiu as novas competências há cerca de seis meses, e durante este tempo temos vindo a integrar e a desenvolver novos procedimentos e formas de atuação numa área de atividade muito específica e, sobretudo, muito sensível do ponto de vista dos direitos humanos.
Quanto à situação no aeroporto, e não é que isto sirva de justificação, mas situações similares verificam-se em outros aeroportos internacionais da Europa e, em alguns, a situação é pior que a que se verifica no aeroporto de Lisboa.
Contudo, é preciso reconhecer o enorme esforço que temos vindo a fazer para minimizar tal situação. Quanto às situações de cidadãos estrangeiros a dormirem nas ruas, as mesmas são de natureza social e não policial, e é essa a razão porque temos vindo a atuar em rede com outras entidades, como a AIMA, a Câmara Municipal, as juntas de freguesia, etc..
O que verificamos é que muitos destes cidadãos estrangeiros, quando o seu processo é indeferido, recorrem. Mesmo na circunstância em que o cidadão estrangeiro foi objeto de uma ordem de abandono do território nacional, a mesma estipula um prazo para o seu cumprimento.
Se o cidadão estrangeiro for intercetado e tal prazo estiver ultrapassado, o cidadão é presente a um juiz e o processo seguirá os respetivos trâmites legais, podendo o cidadão vir a ser retido num Centro de Instalação Temporária.
Se a PSP identificar algum cidadão estrangeiro em incumprimento irá, como é natural, cumprir a lei e a decisão será das autoridades judiciais. A polícia não deporta pessoas, apenas cumpre as decisões judiciais.
Os imigrantes sem abrigo nos Anjos não são caso único? Os imigrantes sem abrigo e os estrangeiros na cidade, quantas pessoas estão nesta situação?
Na cidade são várias dezenas de pessoas - nacionais e estrangeiras - que estão em tal situação. As situações estão mapeadas, mas não podem ser vistas como problemas de polícia, que apenas podem ser resolvidas pela polícia, pelo contrário, estas situações só podem ser resolvidas através do trabalho em rede, em que a polícia é apenas mais um dos atores envolvidos.
Está prevista a instalação de 242 câmaras de videovigilância em Lisboa nos próximos três anos. Na sua estimativa podem substituir quantos polícias?
A questão não é essa. O sistema de vídeo proteção funciona como um multiplicador da nossa capacidade de observar os locais que têm uma maior probabilidade de registo de determinados tipos de ocorrência e, quando a prevenção não funciona, o recurso à imagem serve como meio de prova.
É muito importante considerar o efeito de dissuasão e preventivo de diversos tipos de comportamento que estes sistemas têm e como podem multiplicar a capacidade de intervenção da polícia.
Mas são fixas as câmaras ou móveis?
São câmaras fixas.
Sendo fixas a criminalidade vai-se deslocar para outros sítios, não é?
A transferência pode acontecer, mas aquela zona, será sempre, em termos relativos, mais segura que as zonas não abrangidas, pelo que a alocação de recursos policiais a essa zona não será prioritária, podendo os recursos serem empregues em zonas onde se verifique um maior risco de vitimação.
Outro desafio para a PSP em Lisboa são as manifestações extremistas, anti-imigração, contramanifestações, um fenómeno cada vez mais frequente. Há preparação especial da parte dos vossos agentes para lidar com esta realidade?
Atualmente, qualquer manifestação é objeto de avaliação do risco de disrupção da ordem e segurança públicas, sendo associado um determinado nível de risco a cada cenário gerado. São estes que orientam a seleção dos recursos e das valências a utilizar no policiamento da manifestação.
Não utilizamos apenas os polícias fardados, mas também recorremos a polícias da investigação criminal para a deteção, e se for o caso, neutralização de indivíduos que cometam crimes.
No nosso modelo de policiamento de manifestações, atendendo ao nível do risco associado aos diferentes cenários, podemos ainda recorrer à utilização de câmaras ou drones, ou seja, quando temos uma grande manifestação e essa implica um risco elevado, toda essa tecnologia é posta ao serviço do comandante tático e é utilizada para garantir que a manifestação, independentemente da sua natureza, decorre nos termos da lei e que não há contramanifestações.
Ou, se existir a tentativa de formar contramanifestações durante, por exemplo, o desfile, temos a capacidade de prevenir, mitigar ou neutralizar essas contramanifestações.
E tem resultado essa estratégia?
O modelo tem permitido que todas as manifestações que têm ocorrido se tenham desenrolado com impacto mínimo ou residual na ordem e segurança públicas e no exercício dos direitos dos cidadãos.
Na última que ocorreu, que foi a primeira anti-imigração que estava prevista para o Intendente e foi transferida por vosso parecer para o Chiado, acabou na Praça do Município com confrontos, mas entre a polícia e os contra manifestantes.
O que aconteceu foi que a manifestação do movimento 1143 estava a aproximar-se da praça do município e nessa praça estava um conjunto de pessoas que se constituíam como uma contramanifestação.
As contramanifestações são proibidas. E, na circunstância em concreto, a ação da polícia foi no sentido de prevenir potenciais confrontos, separando os contra manifestantes dos manifestantes, uma vez que tal proximidade ia aumentar, e muito, o risco de confronto entre manifestantes.
E tinham de usar a força para isso?
Foram utilizados os recursos, as táticas e as técnicas consideradas naquele momento e espaço - necessárias, adequadas e proporcionais à situação em concreto.
O DN noticiou uma denúncia de algumas ativistas climáticas sobre formas abusivas de revista de que foram vítimas. Já há resultados do inquérito que foi instaurado pela PSP?
O inquérito ainda está em curso e estamos a aguardar os resultados.
Qual é a sua leitura do inquérito de vitimação realizado pela CML e divulgado em setembro de 2022, segundo o qual a esmagadora maioria dos lisboetas sente-se seguro na cidade e confia no trabalho da PSP e da Polícia Municipal, mas mais de metade das pessoas não participa os crimes de que é vítima?
Apesar de não conhecer esse estudo mas apenas o que foi noticiado no DN, esses resultados, sobretudo da apreciação do trabalho policial que é feito pelas pessoas, deve deixar-nos satisfeitos.
Significa que o nosso esforço está a ser reconhecido. Mas há algo que é importante assinalar, como o artigo diz, é que desde meados dos anos 1990 que não é realizado um inquérito de vitimação a nível nacional.
A sua relevância decorre do facto de que os inquéritos de vitimação, que começaram a ser realizados a partir do final dos anos 1960, nos Estados Unidos, são um instrumento muito importante, não só para as políticas públicas de justiça e de segurança, mas também são um instrumento muito importante para a polícia, porque permitem avaliar qual a interpretação que os cidadãos fazem da sua atividade.
É também muito importante para avaliar aquilo que em Portugal se designa como sentimento de insegurança, mas que tecnicamente é designado como medo do crime. E também muito importante é que é através de tais inquéritos que se podem avaliar o valor das cifras negras relativamente a certos crimes.
Porque quando se refere cerca de X % de pessoas não denunciam determinado tipo de crime às autoridades, tal significa que esses crimes não denunciados contribuem para o crescimento das cifras negras, isto é, crimes que foram cometidos, mas que nunca chegam ao conhecimento das autoridades.
Mas este estudo refere isso. O que é que lhe diz esta percentagem tão grande de pessoas que não apresenta queixa?
Não conheço o estudo como referi, mas reportando-me aos relatórios nacionais dos anos 1990, as razões apresentadas para a não denúncia às autoridades relacionavam-se com a perceção de que as autoridades - polícias e tribunais - não faziam nada ou não dariam importância ao crime e, portanto, não valia a pena denunciar os crimes.
Devo referir duas notas importantes: os relatórios de vitimação não avaliam a resposta dos inquiridos a todos os tipos de crime, mas apenas a um grupo reduzido de crimes; e a sociedade portuguesa e as representações sociais que os cidadãos têm relativamente à polícia e aos tribunais, por exemplo, mudaram muito desde os anos 1990.
No caso das cifras negras, e em termos comparativos, o furto de uma viatura provavelmente será o tipo de crime que as vítimas participarão sempre às autoridades. Já nos inquéritos dos anos 1990, o crime de violação, por exemplo, apresentava uma elevada percentagem de não denuncia às autoridades, porque existiam dinâmicas culturais que afastavam as vítimas da denuncia de tais crimes.
Os inquéritos de vitimação permitem pois conhecer as vítimas, o sentimento que expressam sobre o crime e as suas representações quanto aos atores da justiça, conhecimento muito importante para a formulação de políticas públicas, podendo os dados dos inquéritos de vitimação servir de base ao lançamento de campanhas de informação e sensibilização, tendentes à diminuição de algumas das cifras negras.
Na minha opinião pessoal, seria muito útil a realização de um inquérito de vitimação a nível nacional para termos uma perspetiva atualizada - uma vez que passaram mais de 30 anos desde a realização do último inquérito (nesse período de tempo foram realizados alguns inquéritos a nível de alguns Concelhos ou áreas, mas não a nível nacional) - sobre o sentimento de insegurança, sobre o que pessoas pensam sobre o sistema judicial, sobre a polícia, etc..
Se calhar há quem não tenha interesse nisso, a nível de poder político…
Penso que não se trata de uma questão de não ter interesse, pois os inquéritos de vitimação são importantes para a formulação de políticas públicas. Acredito que, eventualmente, um dos problemas seja o seu custo, mas o mesmo seria compensado com um maior conhecimento sobre as vítimas e sobre o que estas pensam sobre a justiça, sobre a polícia, etc.