Fátima, os dias em que a vida se fez de pequenos-nadas

Na primeira pessoa. A simpatia do Papa Francisco e as mensagens que enviou - sobre a paz, sobre a forma como peregrinam, sobre as aparições -, ou as histórias de fé e das pessoas que fizeram quilómetros para chegar ao Santuário da Cova da Iria e participarem nos cem anos de Fátima? O que terá marcado mais a vivência dos jornalistas do DN durante estes dias? Este foi o desafio lançado aos quatro repórteres que estiveram no terreno neste 13 de maioe que com ele viajaram no mesmo avião. Os testemunhos aqui ficam
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A foto não é boa, mas o momento compensa toda a minha falta de jeito para selfies e outros demónios da era digital. Não havia como não reparar nos olhos rasos de Tahani Jamal, a iraquiana de 27 anos que acabara de receber a bênção do Papa Francisco, a 13 de maio, na Cova da Iria, juntamente com os três filhos, o marido e a mãe. E havia um corrupio de fotógrafos por perto naquele instante em que me afastei, qual árvore na imensa floresta de gente. Disparavam freneticamente, enquanto a rapariga sorria, emocionada, uma muçulmana num mar de católicos, muitos deles em transe. Há muito que sabia da existência destas oito pessoas que vivem na histórica vila da Batalha, a quem o Papa conhecera num campo de refugiados perto de Roma, durante a semana santa pascal, em 2016. "Sensibilizado pela história da família - que inclui fugas da Palestina para o Iraque (da avó em 1954) e da Síria para a Europa, que incluiu num percurso marítimo até à ilha italiana de Lampedusa, o papa manteve o contacto com os refugiados", escreve o jornalista Carlos Almeida na edição online do Região de Leiria. Apesar de muçulmanos, "têm uma grande devoção a Nossa Senhora, por ser mãe de Jesus Cristo, considerado um dos profetas do islão, precursor de Maomé", explicava Cíntia Silva, a vereadora da Câmara da Batalha que tem acompanhado de perto aquela família. Conhecia a história, mas nunca me calhara em sorte contá-la nas páginas do DN, onde já desfiámos tantas contas deste rosário. E algumas vivem comigo, mais ou menos presentes, conforme os dias. Quando olhava para a felicidade de Tahani, lembrei-me de Tasmin, dos irmãos e da mãe, do pai Fouad; dos sudaneses Belal, Hawa, Samia e Osam. De Susan e Sameer, e dos três filhos pequenos. De todos os refugiados que conheci em Penela, uma gota no oceano de um tempo que, também em Fátima, por estes dias, parecia ter voltado 100 anos para trás. "Cada um dos deserdados e infelizes a quem roubaram o presente", como bem disse o Papa Francisco. Não estive perto dele, mas percebi-lhe o cansaço pelas objetivas de cada camarada repórter. Resistir e assistir de um ponto mais alto à tirania, ao esquecimento, ao enlouquecer do mundo deve ser qualquer coisa de muito desgastante. Sobretudo para quem tem a capacidade de descer à terra e colocar-se na pele dos outros. Foi assim que o vi, tão longe e tão perto, naquelas horas de felicidade para milhares de peregrinos em Fátima, rendido à história de duas crianças que ali foi canonizar. Pouco (me) importa se tiveram visões ou aparições, tão-pouco se a ciência e religião se desentendem com a história do milagre que sustenta a elevação de Francisco e Jacinta Marto à categoria de santos. Na vida - feita de pequenos nadas - nem sempre tudo tem explicação.

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