Páscoa, passagem e conventualidades

Portugal é único em todo o planeta na chamada doçaria conventual, a mesma que elevou o trabalho do açúcar ao nível da excelência e fixou receituário de pastelaria de fazer corar os gurus internacionais da alta pastelaria.
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Ovos, açúcar, ovos e mais ovos. Há qualquer coisa na Páscoa que nos põe em festa à espera da doce recompensa e ao mesmo tempo nos convoca ao cumprimento da velha tradição de produzir o que está lavrado nos livros de cozinha da família, dos conventos e da história. Ousadias calculadas e experimentadas pela mão sábia de Ana Tomás, da Quase Pecado.

É tempo de Páscoa, é tempo de primavera, e é tempo de primícias. Mesmo confinados, é espiritualmente a altura em que a família alargada toca a reunir em torno da mesa farta em doçaria e em primor, animada que costuma ser pelos inefáveis cabrito e borrego. Um e outro assumem à vez o trono gastroculinário da época, consoante a região onde nos encontramos e o que não pode mesmo falhar são os doces. Portugal é único em todo o planeta na chamada doçaria conventual, a mesma que elevou o trabalho do açúcar ao nível da excelência e fixou receituário de pastelaria de fazer corar os gurus internacionais da alta pastelaria. Desde o de certa forma tímido livro de cozinha da infanta D. Maria até aos canhanhos detalhados que andavam outrora dentro e fora dos conventos, corporizou-se o colosso a que candidamente chamamos doçaria conventual. Receituário por isso a um tempo solene e profundamente popular.

Ana Tomás, alentejana de costados de Nisa e Portalegre, começou muito cedo o caminho na difícil arte da pastelaria e logo que a autonomia e liberdade interiores lhe permitiram, começou a dedicar-se de corpo e alma à execução de receitas de sempre, que aos outros saíam moderadamente bem, mas que a ela saíam sempre melhor e melhor. A influência principal vem da mãe e da avó, e eu assumo o risco de dizer que foi a escolhida dos pais da pastelaria portuguesa para prosseguir e necessariamente modernizar esse venerável ofício, a ponto de o trazer para os nossos dias. Vejo por isso o nascimento da Quase Pecado, cujo nome diz quase tudo, com um processo orgânico normal, um filho a juntar aos filhos que a vida lhe deu. Estudou a fundo o receituário, conversou com especialistas clássicos e modernos e sobretudo experimentou até à exaustão. Das muitas possibilidades que lhe coloquei para dar o seu trabalho a conhecer, optou pela devoção a Portalegre e alinhámos os três produtos que a seguir apresento, com a inevitável nota pessoal da especialista de que o aligeiramento do açúcar nas receitas clássicas permite intensificar o sabor do resultado. Muito do açúcar utilizado nas elaborações clássicas era de resto utilizado para garantir a estabilidade dos doces produzidos, não era um objectivo em si mesmo.

O torrão real de Portalegre (20 euros, 500g; 24 euros, 1kg) é um doce bastante raro, mas de tal forma exemplar que não resisto a dá-lo a conhecer. É um doce de fatia e não de colher e é particularmente rico em amêndoas, com a particularidade de ter uma cremosidade excepcional. Nasceu no lindíssimo convento de São Bernardo, bem no centro de Portalegre, inaugurado em 1572 consta que a devoção que está na base da sua construção era tanto beata quanto amorosa. Uma das freiras de então era da particular predilecção de D. Jorge de Melo, bispo da Guarda e todas as doces criações que dali sairam eram copiosas e sápidas. A explicação da sensação cremosa está, segundo Ana Tomás, no facto de levar natas inteiras na sua composição. Utiliza, além disso, o ponto de açúcar em espadana na calda, o que é já um ponto elevado. O génio da nossa pasteleira está na harmonização da cozedura da massa com a força da calda, resultando numa impressão sofisticada e viciante.

São viciantes também os rebuçados de ovo (0,70 euros, 9 euros caixa de 12), tal a suave declinação que a genial Ana Tomás faz da solução que se vê em vários sítios, todos sem comparação com a sua. A receita base provém do mesmo convento de São Bernardo de que acabámos de falar, mas eu digo que é de Ana Tomás e de ninguém mais. O rebuçado quebra e desfaz-se logo que entra em contacto com a língua e o sabor é indescritível! Vem embrulhado individualmente em papel. Só para dar uma ideia do trabalho envolvido na produção dos rebuçados de ovo, há que ter em conta que um bom rebuçado não se faz em menos de 5 dias! São todos batidos um a um e só a massa de ovo consome um dia inteiro. Um trabalho que se mistura com devoção, mas a que Ana Tomás se entrega com paixão.

Finalmente, esqueça tudo o que já provou como toucinho do céu (18 euros 500g, 22 euros 1kg). A receita tem origem no convento de Santa Clara de Portalegre e a que se considera original é a das irmãs Cardoso, que foi confiada a Ana Tomás. Consistência, leveza e sabor únicos. Vale mesmo a pena conhecer estas três gulodices pascais, e aproveitar para conhecer tudo o resto que sai das suas mãos e talento.

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