Cozinhar: o superpoder do quotidiano

Joana Barrios não larga os tachos e está de volta aos ecrãs para a segunda temporada de <em>O da Joana</em>, programa de receitas que estreia hoje na 24 Kitchen.
Publicado a
Atualizado a

Depois das manhãs no programa de Cristina Ferreira, dos três livros de receitas [Nhom, Nhom (2017), O da Joana (2020) e Sopeira (2021)] que já publicou e enquanto não publica outro que já está em andamento, Joana Barrios estreia agora a segunda temporada do O da Joana no canal 24 Kitchen (estreia esta segunda-feira). Conhecida pela multiplicidade de áreas onde se move, da moda à cultura e artes performativas, conta-nos como usa a cozinha para passar várias mensagens, sobretudo uma: cozinhar é um "superpoder" do quotidiano ao alcance de cada um.

Esta segunda temporada d"O da Joana já estava prevista quando foi gravada a primeira?

A primeira temporada foi um teste, esta segunda é um voto de confiança. Com estes novos episódios apeteceu-me encetar uma conversa séria sobre alimentação e aquilo que se pode fazer dentro de uma cozinha, onde há muitos universos que precisam de ser abordados. Muitas vezes aquilo que aparece nos grandes meios de comunicação são quase sempre lógicas de mestria de grandes chefs, o que ao mesmo tempo é muito fascinante, mas que se torna intangível para a maioria. A minha caminhada na culinária parte do princípio que é superfácil começar a cozinhar.

E será dentro da linha da primeira temporada?

Agora estou um pouco mais à vontade com todo o dispositivo de fazer um programa de receitas na TV. A HBO tem agora uma série sobre a vida de Júlia Child, foi ela que inventou, com a sua equipa, os programas de receitas na televisão. Quando vi a série, percebi que passo pelos mesmos dramas: como se filma isto ou aquilo para ficar bonito, como se fotografa um certo prato que não é fotogénico, etc. Mas nestes novos episódios já não estou assim tão tensa. Aquilo que me apetece fazer é olhar para um universo que nos toca de uma forma muito abrangente e não me esquecer de que trago para o legado culinário as minhas heranças, sobretudo das artes performativas. Por isso cada episódio tem um tema e os pratos são pensados em volta dele, com várias premissas: ingredientes fáceis de encontrar, obviamente nem todos são autóctones, é o nível de puritanismo que adoro, mas que de alguma forma pode impossibilitar a chegada às cozinhas a quem não está habituado. Como se substitui uma coisa por outra, por exemplo, e isto vem da herança do restaurante dos meus pais.

Citaçãocitacao"Cada episódio tem um tema e os pratos são pensados em volta dele com várias premissas, entre as quais ingredientes fáceis de encontrar e como se podem substituir ingredientes por outros."

Como assim?

Os meus pais tinham um restaurante em Montemor e quando, em 1998, chegava alguém para trabalhar no centro cultural, de repente aquela pequena cidade acolhia uma equipa inteira de bailarinos vegetarianos e tinha que arranjar alternativas vegetarianas. Mais rapidamente se fazia uma bolonhesa de soja do que se pensava que umas migas de espargos ou uma sopa de tomate são pratos vegetarianos e que podem ser facilmente transformados em pratos veganos. É um pouco com essa lógica de teres uma partitura e o que podes encaixar por lá que depois faço uma abordagem temática aos pratos. Nas redes sociais pedem muito comidas saudáveis, mas nem sempre são necessários ingredientes muito especiais para confecionar algo saudável.

E qual é a abordagem da Joana Barrios de alimentação saudável?

A minha abordagem passa por suprimir alimentos já processados. Sou eu a processar tudo do início, e isso exclui uma série de elementos artificiais, e aí já se entra no campo da nutrição. Acho que a alimentação tem essa visão, tal como o teatro, de englobar tudo. A mim custa-me, e isso é visível nos programas, afunilar as coisas e indicar que certas coisas só se fazem de certa maneira. Há pessoas que seguem uma receita mas que podem ir por outro caminho, e o divertido da cozinha é isso.

Há um novo público conquistado com esta exposição "gastronómica". Quem são?

É muito heterogéneo, e isso é maravilhoso. Nunca tinha percebido que a comida e a gastronomia têm este poder tão universal. Como venho das artes performativas, sempre achei que a dança é provavelmente a expressão mais universal de todas. E de repente vem a comida. Quero difundir a mensagem que cozinhar é um superpoder do quotidiano.

E o quotidiano e a rotina do ter que cozinhar no dia a dia não estraga a "magia" da cozinha?

Não, lá está, é o sítio dentro da rotina onde me posso expandir. Posso estar a ouvir uma música ou, muitas vezes, ter os meus filhos a participar. E quando não consigo cozinhar aquilo que eles pedem, faço uma espécie de clube dos pequenos críticos de comida, tudo para os trazer para este universo, e essas coisas afastam-nos do peso da rotina.

Com todas essas várias vidas - na moda, nas artes, em meios mais alternativos -, foi difícil passar a ser conhecida no mainstream. Foi a participação no programa da Cristina Ferreira que mudou isso?

Sim, apesar da boa repercussão que o programa de moda Armário (RTP Play) teve, era um programa com temática de nicho. A alimentação não é de nicho.

E como foi essa passagem?

Lidei mal com isso. Sou muito simples e tenho consciência de que sou muito dura comigo e que me coloco sempre em situações de risco. No entanto, o que encetei com o primeiro livro (Nhom, Nhom) e quando surge o convite da Cristina [Ferreira], e que aconteceu por causa do livro, olhei para essa oportunidade incrível de chegar a um enorme número de pessoas. No fundo é o que andamos todos aqui a fazer, vamos lá deixar-nos de merdas, todos queremos lá chegar. Lembro-me de que a primeira coisa que a Cristina [Ferreira] me disse foi que as pessoas me iriam parar na rua e que passava a ser das pessoas, o que me assustou muito, mas ao mesmo tempo é muito bonito e gratificante. Porque vem do lugar da partilha de receitas.

No programa da Cristina existiu uma clara opção por não mudar, não passar a ser mais normativa para agradar a mais gente?

Isso iria comprometer a minha maneira de ser. A televisão gosta de espetáculo e aquilo é uma performance culinária. Não mudei, nem me apetecia ter mudado. Vejo-me bem no papel que tenho hoje em dia, está no prefácio do livro Sopeira, é muito sintomático como te compreendem através da comida e podes passar tantas outras mensagens: inclusão, diálogo, partilha, possibilidade de falhar, que acontece muito na cozinha, no 24 Kitchen não tanto, mas quando cozinhamos em programas em direto as coisas podem correr mal. E isso é uma espécie de metáfora para a vida: nem tudo corre sempre bem, mas também nem tudo corre sempre mal.

E o futuro, continua a ser pela cozinha?

Não, não vou ter um restaurante (risos). Estou a escrever mais um livro com as receitas desta segunda temporada, tenho também uma marca de cozinha chamada Bellícia, que criei com a empresária Joana Duarte, que é um projeto a uma escala pequena e artesanal. E gostava de poder fazer levantamentos gastronómicos do Alentejo e de produzir conteúdos sobre isso, uma coisa mais documental. E vou continuar nas outras áreas, onde tenho muitas coisas para fazer.

filipe.gil@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt