Cerdeira: a aldeia de xisto que renasceu como refúgio criativo
Não se sabe ao certo se a aldeia da Cerdeira, na Serra da Lousã, estava abandonada há 50, 60 ou até 100 anos quando a alemã Kirsten Thomas, hoje 61 anos, encontrou as ruínas de xisto naquele inóspito vale em 1987. Então estudante na Universidade de Coimbra, a artista de cerâmica, estava à procura de algum lugar isolado para desenvolver seu trabalho quando viu no vale o que sonhava enquanto cenário inspirador para a arte.
Décadas depois, o que antes eram ruínas de um passado quase esquecido tornou-se a casa de uma das principais escolas de artes do país, a Cerdeira – Home for Creativity, que procura unir a cerâmica a uma forma de alojamento que foge do habitual.
“Tudo começou com o ateliê da Kirsten. Ela juntou-se a alguns amigos e adquiriu a primeira casa”, conta Sérgio Alves, 42 anos, e o diretor de operações do projeto, que hoje tem dez casas recuperadas – recentemente mais quatro foram adquiridas para recuperação. De “locais”, apenas um, o senhor Carlos, que gere uma loja de chás e uma vez ou outra põe os pés ali. “Ele não vê isso como um negócio”, conta Sérgio.
Aos poucos, o sonho de Kirsten começou a ganhar forma com a criação de uma escola de artes focada em cerâmica, madeira e cestaria, sendo que só depois veio o alojamento, construído em torno desse conceito. Natural da Lousã, Sérgio juntou-se ao projeto há dois anos, atraído pela proposta incomum. “Aqui não temos hóspedes, temos vizinhos temporários”.
A diferença salta à vista. Enquanto outras aldeias de xisto se transformaram em parques temáticos do rural e territórios tomados pelo Alojamento Local, a Cerdeira mantém um pé no passado e outro na vanguarda. Não há televisões nas casas, nem serviços de concierge. As refeições – típicas, como a chanfana – são entregues em cestas para os hóspedes aquecerem quando quiserem, ou feitas coletivamente na Casa das Artes, o coração do projeto.
“Quem vem sabe que não é um hotel. Às vezes as pessoas podem ficar frustradas porque esperavam mordomias, então é algo que deixamos claro quando cai uma reserva: não é um hotel e nossa ideia não é transformar isso numa aldeia de turismo massificado”, frisa Sérgio, que afirma que o cliente que frequenta o espaço se divide em dois nichos: residentes artísticos das mais diversas partes do mundo e aqueles que querem “desligar” ligeiramente do resto do mundo.
As dez casas disponíveis na Cerdeira têm tamanho e conceitos que variam, com espaços que podem receber de duas até seis pessoas. Todas as casas dispõem do básico que os “vizinhos” precisam para uma estadia auto suficiente: frigorífico, fogão, micro-ondas, máquina de café, utensílios básicos de cozinha e até produtos para as refeições, como azeite, óleo, pimenta e sal são disponibilizados nas mais diversas casas. A salamandra também é imprescindível.
A pérola da cerâmica
Para viabilizar a escola que idealizava, Kirsten contou com a ajuda de dois amigos para o desenvolvimento do espaço: José Serra, natural da Lousã e empreendedor no ramo tecnológico, e sua esposa, a russa Nathalia. Catarina Serra, filha do casal, é hoje a gerente da empresa. “Isso é o primórdio das residências artísticas. Começamos a fazer quando poucas em Portugal o faziam e a adesão foi enorme”, relembra. “Foi aí que nós percebemos que as pessoas estavam a ver algum tipo de potencial e se calhar não fôssemos assim tão malucos”, brinca.
O grande tesouro da escola é o forno Sasukenei Kiln, um projeto do ceramista japonês Masakazu Kusakabe (1949-2022), construído em 2014 e único na Península Ibérica - existem apenas 12 desse tipo ao redor do mundo. “Ele atinge 1.300°C em 36 horas de queima contínua, mas quase não emite fumo visível”, explica Tatiana Simões, gestora da escola de artes. A técnica, que exige alimentar as chamas em turnos de duas horas, atrai ceramistas do mundo todo. “Trouxemos artistas dos mais diferentes níveis, alguns que são referências globais, outros que nunca tiveram contacto com a prática. Muitos vêm só para aprender neste forno”, completa. “A cerâmica se tornou muito trendy nos últimos anos”, comenta Sérgio.
Os cursos na Escola de Artes variam de €500 euros (um fim de semana) a €3.000 (12 dias com alojamento incluído) e esgotam meses antes. “75% dos participantes são estrangeiros”, diz Tatiana. Além da cerâmica, há formações em madeira (usando mimosa da região) e cestaria, sempre com materiais locais. Existem também os cursos de curta duração, de iniciação a roda de oleiro, figurado em cerâmica, cozinha regional e casinhas de xisto em miniatura.
Em 2025, o projeto prepara-se para celebrar os dez anos do Sasukenei Kiln com um encontro global de ceramistas. Enquanto isso, Kirsten, agora dividida entre a Cerdeira e os Açores, continua como diretora artística da casa. O seu legado? O conceito da escola artística e do alojamento da Cerdeira recebeu o Prémio Nacional de Turismo 2021 na categoria Turismo Autêntico, distinção recebida por promover a cultura e as artes no interior de Portugal. Uma prova de que, no meio da serra, a mais de 1200 metros de altitude, nasceu um refúgio criativo com endereço no mapa mundial das artes.
Os cursos na Escola de Artes variam de €500 (um fim de semana) a €3.000 (12 dias com alojamento incluído) e esgotam meses antes. "75% dos participantes são estrangeiros", diz Tatiana. Além da cerâmica, há formações em madeira (usando mimosa da região) e cestaria, sempre com materiais locais. Existem também os cursos de curta duração, de iniciação a roda de oleiro, figurado em cerâmica, cozinha regional e casinhas de xisto em miniatura.
Em 2025, o projeto prepara-se para celebrar os 10 anos do Sasukenei Kiln com um encontro global de ceramistas. Enquanto isso, Kirsten, agora dividida entre a Cerdeira e os Açores, segue como diretora artística da casa. Seu legado? O conceito da escola artística e do alojamento da Cerdeira fez o seu negócio ser corado com o Prémio Nacional de Turismo 2021 na categoria Turismo Autêntico, distinção recebida por promover a cultura e as artes no interior de Portugal. Uma prova de que, no meio da serra, a mais de 1200 metros de altitude, nasceu um refúgio criativo com endereço no mapa mundial das artes.
nuno.tibirica@dn.pt