Café de São Bento. Celebrar 40 anos de vida com planos para crescer
Quando Miguel Garcia trocou a condução dos hotéis Tivoli pela oportunidade de embarcar numa aventura a solo com a compra do Café de São Bento, fez uma promessa: não mudar nada. Mas pela sua mão chegaram diferenças que os mais fiéis clientes não ignoram - e valorizam. A começar pelo ator principal da peça: os bifes são os mesmos que ali se servem há 40 anos, devidamente mergulhados no molho que os torna os melhores de Lisboa e acompanhados de batatas fritas a sério, mas a carne é mais tenra, de qualidade superior e até já se consegue satisfazer pedidos ocasionais de maior generosidade no corte. A água que chega à mesa passou a ter consciência ambiental, enchidas as garrafas de vidro na casa - "É absurdo o impacto ambiental de transportar as águas por camiões, a queimar diesel, quando a nossa água da torneira é ótima."
Habituado a gerir negócios como se fossem seus e com 20 anos de experiência na hotelaria e restauração - foi ele quem montou conceitos de sucesso absoluto como o Seen, com Olivier, no topo dos Tivoli -, em nenhum momento Miguel dispensa a prata da casa. Se agora o negócio é mesmo dele, é com a equipa que fez e faz o Café de São Bento que toma todas as decisões, é a eles que ouve sobre fornecedores e métodos de trabalho, é ao lado deles que constrói o futuro de uma casa com 40 anos de vida e muitas histórias enterradas nas paredes e na discretíssima memória de Agostinho, Fernando, Manuel, Davide e Manuel Lobo (respetivamente com 27, 35, 27 e 17 anos de casa).
Acumulando mais de 100 anos de serviço no número 212 da Rua de São Bento, são eles a mais-valia que Miguel Garcia reconhece ser fundamental para o negócio funcionar. "Não há nada que eu faça aqui que não tenha a opinião deles", garante, admitindo que rever horários e salários foi das primeiras medidas que tomou, um investimento que ajudou a mostrar ao que vinha, não para delapidar o passado mas para fazer dele boa fundação para um futuro frutuoso.
A base parece estar lançada: "Neste momento, estamos com a faturação 60% acima de 2019", revela. Um sucesso que contagiou também a energia da equipa, visivelmente rejuvenescida e entusiasmada com o projeto. E que não é uma brincadeira. Todos os meses, o Café de São Bento compra uma tonelada de carne para o restaurante - e que chega também ao balcão do Mercado Time Out Ribeira, extensão da casa, num conceito distinto. Esta gestão de sinergias encontra resposta na necessidade de fazer face aos efeitos da guerra, a começar pela inflação. "Houve uma altura, antes do verão, em que temi ficar sem carne, por causa das interrupções das cadeias logísticas. E eu trabalho com um monoproduto, portanto não era questão de substituir..." Não esperou para ver: comprou umas arcas topo de gama e encheu-as com umas boas centenas de quilos de carne encomendada por antecipação aos fornecedores, para garantir a operação.
É o tipo de lições que se aprendeu em pandemia, quando o inesperado se tornou regra. "Eu abri e fechei os hotéis por duas vezes", lembra. "Hoje tudo é diferente. O worst-case scenario, que era de faturar só 60%, passou a ser mesmo o zero. É preciso contar com isso quando se faz investimentos, sobretudo se há dívida envolvida. É essencial garantir um respiro, uma almofada para se as coisas correrem mesmo mal."
Mas nada disto desencoraja Miguel Garcia. Nem sequer a inflação com que lida desde que assumiu o Café de São Bento - naturalmente, com impacto considerável no negócio. Porque Portugal não tem capacidade - "aqui é preciso comprar a carcaça inteira e nós só consumimos lombo e vazia, por isso não dá" -, a carne vem de fornecedores da Nova Zelândia, da Alemanha, da Polónia e da América do Sul. E logo aí os custos escalaram. "O preço da proteína agravou-se em 25% desde março. E nós somos o fim da linha, não podemos repassar esse aumento para o cliente." Os óleos subiram imenso, a energia pegou fogo, com as contas de gás e eletricidade a ascender a 2 mil euros por mês. Mas "esse é o momento em que sabemos que vamos ter menos pontos percentuais na margem e que temos de tentar ir buscar eficiências" e esperar que passe.
Para marcar 40 anos de uma das melhores casas de Lisboa, onde ainda se sentam à mesa avós, filhos e netos mas também é poiso regular de muitos deputados da nação - pela proximidade, mas também pela qualidade e discrição garantida do outro lado da rua da Assembleia -, Miguel traçou uma mão cheia de projetos, em duas fases: o aniversário e o futuro.
Entre esses planos, que incluíram já uma volta na comunicação da marca, está uma "suave remodelação", que não vai alterar em nada o conceito, mas vai melhorar detalhes e valorizar o espaço. "Coisas como mudar tecidos e melhorar casas de banho", concretiza. Depois, para responder à vontade de trazer novas gerações de clientes, recuperou o menu executivo (25 euros ao almoço de dias úteis). E enfim tomou a decisão de criar um vinho que celebrasse o aniversário. "Desafiei o sommelier Rodolfo Tristão e a Ravasqueira, para fazer um vinho específico para aqui. Fizemos um Reserva 2020 carregado com esse simbolismo, um lote especial com touriga nacional, touriga franca, syrah e alicante bouschet, e estou muito contente com o resultado." As 3600 garrafas engarrafadas desde o verão começam a ser vendidas agora pelas festas e podem ser levadas para casa para ter um bocadinho do Café de São Bento à mesa de Natal.
Mas a verdadeira ambição virá em 2023. Miguel Garcia marcou o horizonte temporal de um ano para ter um segundo espaço Café de São Bento a funcionar ou pelo menos em obra. Em Lisboa ou na zona de Cascais/Estoril. "Tenho de sentir que o local faz o encaixe - a fachada, o espaço, a logística, tem de ser um sítio de que o cliente-alvo goste. Não vou fazer copy/paste, isso não faz sentido, mas quero que se sinta a identidade da casa. Sobretudo não quero fazer coisas fancy, não é de todo o meu estilo." E para comprovar o que diz: "Esta remodelação aqui está a ser feita com a Inês Moura, arquiteta da Saraiva & Associados, e disse-lhe expressamente que não quero nada instagramável. As pessoas que vêm ao Café de São Bento não querem neons, querem este ambiente intimista, discreto, onde se consegue conversar."
A ideia é "expandir sem estragar" - nada de shoppings ou mais mercados, recriando o mood noutras geografias. E dos projetos faz parte uma delas ser o Porto. O parceiro local, que é essencial para Miguel - "A pessoa tem de estar integrada na sociedade e isso não é alguém de Lisboa que consegue" -, já o tem identificado, mas ainda não está a bordo, pelo que não o revela. "O ambiente, o espírito terá a marca do Café de São Bento, mas adaptado. O bife será absolutamente igual, sem tirar nem pôr, mas posso ter, por exemplo, coisas novas de entrada, de sobremesa..."
O que o pode travar essa ambição? Para quem negociou a compra de um restaurante em plena pandemia e agarrou no leme quando rebentava uma guerra que fazia disparar todos os custos, não há muita coisa que o possa assustar. Mas assume que um abrandamento do consumo é o que mais o preocupa: "Até pode não chegar a atingir este segmento, mas há que ter cautela; não se pode menosprezar os sinais." Ainda assim, tem uma vantagem assumida: "Só tenho de falar comigo próprio para decidir investir ou não."
O investimento total para essa ambição "está no Excel". Mas se não se monta "um restaurante decente por menos de 500 mil a 1 milhão de euros", cumprir estes planos implicará músculo. Até porque o investimento já feito na casa-mãe, incluindo reputação, clientes e os quatro pisos do edifício numa das melhores zonas da cidade, terá certamente multiplicado várias vezes esse valores.
Os dez ou 15 anos que aí vêm foram a razão de Miguel Garcia ter saído do Tivoli. Aos 42 anos e tendo há muito na ideia o projeto de ter um negócio destes, sentiu que era o momento. "Isto requer energia e disponibilidade, por isso se não fosse agora corria o risco de já não fazer... e eu não sou de me arrepender do que fica por fazer." Claro que a decisão surpreendeu os amigos e por isso faz questão de frisar: "Correu tudo bem! Eu não estava frustrado nem fui despedido...", ri-se.
Depois explica porque deixou então para trás a segurança de um grupo multinacional com provas dadas para se atirar de cabeça e a solo a um investimento em nome pessoal. "Eu comecei na hotelaria em 2000, vivi quatro anos na Suíça, onde estudei e trabalhei, estive quase dez no Brasil a gerir hotéis como o Copacabana Palace, onde tinha 700 funcionários, passei para o Tivoli e montei o Seen em São Paulo, que repeti aqui, e deu sempre tudo muito certo. Dava-me bem, era promovido, tudo corria sobre rodas. Mas há anos que eu tinha a ideia de ter o meu negócio nesta área - é o que gosto e sei fazer - e decidi avançar."
Porque andava com "o radar ligado", em conversa com os amigos da casa - em particular Agostinho -, percebeu que teria hipóteses de fazer uma oferta pelo Café de São Bento: os donos queriam vender, mas com a garantia de que o espaço não perderia a sua identidade, a começar pela equipa. Entre quinta-feira e a segunda-feira seguinte a decisão estava tomada. Até porque Miguel conhece o valor de uma equipa para um projeto, sobretudo nesta área.
"O principal ativo é a reputação e essa é construída todos os dias por eles", resume. E esse é talvez o maior desafio de longo prazo: começar a formar pessoas que possam assumir a casa quando, daqui a dez anos, os alicerces do Café de São Bento se reformarem. "Tenho de ser capaz de trazer profissionais que transportem esta alma, que vivam esta forma de tratar as pessoas."