J, um alentejano de exceção

Sem pressas nem preocupações de agradar a turistas e críticos, a José Maria da Fonseca aposta, nas suas vinhas de Reguengos de Monsaraz, num vinho da talha de alta qualidade, produzido com o rigor dos métodos tradicionais. Assim nasceu o J de José Sousa Tinto.
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Quatro décadas de vindimas ensinaram ao enólogo Domingos Soares Franco que a vinha não é uma ciência exata. Quando se preparava a colheita de 2017 teve a intuição de que os tempos poderiam ser propícios, mas só aos mais próximos comunicou a esperança que o animava. Não estava enganado já que a adega José de Sousa (nas mãos da família José Maria da Fonseca, de que ele próprio é membro da sexta geração) acaba de lançar a colheita de 2017 do J, de José de Sousa Tinto, um vinho da talha que só é lançado em anos de qualidade muito acima da média. O mesmo que, em 2015, ou seja na colheita anterior, merecera uma alta classificação à revista especializada norte-americana, Wine Enthusiast.

Produzido com as castas Grand Noir, Touriga Francesa e Touriga Nacional, o J vem de vinhas localizadas em Reguengos de Monsaraz, quase à beira Alqueva, embora, como frisa Domingos Soares Franco, a sua água não chegue ali. Para tão bons resultados contribuem necessariamente os solos de origem granítica, dotados com de excelente exposição solar, mas também os cuidados dignos de Alta Costura dedicados às uvas: o método tradicional de pisa-a-pé (realizado num pequeno lagar para evitar que as sementes se rompam e forneçam ao vinho taninos de má qualidade) e a fermentação nas centenárias ânforas de barro. Antes disso, já a colheita e seleção das uvas fora feita à mão, de forma criteriosa, separando os bagos e cachos de maior qualidade. O resultado irá agora para o mercado, em apenas 3400 garrafas, uma edição quase exclusiva. Domingos Soares Franco define-o como "muito suave, subtil e com elegância". Engarrafado, tem uma longevidade estimada de 20 anos.

O objetivo da José Maria da Fonseca é, nas palavras dos irmãos Domingos e António, apresentar uma oferta vinícola que "corresponda à melhor tradição do vinho da talha alentejano", e não um produto mainstream para consumo turístico. Foi com esse objetivo que, nos anos 1980, esta casa, fundada por José Maria da Fonseca no século XIX, agarrou a oportunidade de comprar a adega e as vinhas de José de Sousa Rosado Fernandes, situadas na região de Portalegre e um pouco abandonadas após o 25 de abril e o processo da reforma agrária. Esta aquisição traria, no entanto, vários problemas. À data da compra, a adega não tinha vinhos que permitissem fazer um historial ou estudar sequer o seu perfil. Mas a persistência acabaria por frutificar. Já em Reguengos, onde o terreno e as condições climatéricas se mostravam mais favoráveis, procuraram reconstruir todos os passos do milenar processo de produção do vinho da talha, quer em termos de variedade de uva, quer no trabalho de estágio em ânfora.

Na Adega dos Potes, o enólogo Paulo Amaral confirma que a pressa é incompatível com este tipo de produto. Num edifício construído no terceiro quartel do século XIX, estão hoje depositadas 114 talhas, antiquíssimas, das quais só 65 estão operacionais. A produção deste ano acabou por dar 7 talhas (com capacidade para 1000 kgs cada), três de vinho branco e quatro de tinto, mas o paladar só se dará a conhecer no momento da prova, diz Paulo Amaral: "Aqui nada é garantido. Sabemos apenas que há ânforas mais interessantes do que outras. Não sabemos exatamente porquê, só sabemos que é assim. Até as particularidades da terracota de cada ânfora podem influir no sabor do vinho." Neste mundo de caprichosos materiais, todo o cuidado é pouco. Muito antigas, algumas ânforas não suportam o poder da fermentação e acabam por implodir, como demonstram alguns exemplares ainda existentes na Adega dos Potes.

Fiel à história do vinho e do Alentejo, a José Maria da Fonseca mantém neste lugar, que acaba por ser um pouco um museu de antigas práticas mediterrânicas, um enorme menir pré-histórico encontrado pelos trabalhadores nos primeiros trabalhos na vinha. Não muito longe do cromeleque dos Almendres (o maior monumento megalítico da Península Ibérica, construído há cerca de 7000 anos), este menir aguarda agora, segundo António Soares Franco, "a intervenção de uma equipa de arqueólogos para poder ser apresentado ao público, com um tratamento museológico compatível com a sua importância." Debaixo do telhado da adega, o menir pode, assim, ser poupado tanto ao desgaste imposto pela Natureza como por eventuais atos de vandalismo. Entre ânforas de inspiração romana e vestígios de povoados pré-históricos, é com gosto que, na Adega dos Potes, se brinda à tradição.

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