"Uma discussão entre humano e máquina é algo que nunca vimos antes"
O IBM Debater é o primeiro supercomputador capaz de debater com seres humanos e até tem sentido de humor. Entrevista com Noam Slonim, um dos investigadores por detrás do projeto que é a próxima fronteira da inteligência artificial.
A imagem de Michael Knight a falar com o seu carro KITT através de um relógio inteligente, na série dos anos oitenta "O Vingador", foi premonitória em relação a várias tecnologias. No entanto, aquilo que continua a ser ficção científica, mais que um carro que conduz e estaciona sozinho, é a sua capacidade de conversar com o dono e trocar argumentos. Qualquer pessoa que tente interagir de forma contínua e em linguagem natural com um assistente digital por voz, como o Siri e o Google Assistant, percebe as suas limitações. Apesar da evolução, a dificuldade de criar sistemas artificiais capazes de manter uma conversa com um humano continua a ser um dos mais desafios da indústria.
É neste contexto que o novo supercomputador da IBM, Debater, introduz novidades promissoras. Trata-se do primeiro sistema capaz de compreender argumentos enunciados por humanos, criar a sua própria contra-argumentação e comunicá-la de forma articulada em linguagem natural. O sistema esteve a ser desenvolvido durante os últimos cinco anos e teve em São Francisco o primeiro debate externo, estreando-se com dois temas quentes: o financiamento estatal da exploração espacial e a utilização de telemedicina. Não só manteve uma discussão com dois profissionais do debate, Noa Ovadia e Dan Zafrir, como teve tiradas de humor em que demonstrou autoconsciência, referindo-se ao facto de ser uma máquina e não um humano. Tudo com processamento de informação ao vivo, sem intervenção humana nem erros de interpretação.
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Foi no rescaldo desses debates que falámos com Noam Slonim, que lidera o desenvolvimento do IBM Debater com Ranit Aharonov. Ele é o engenheiro israelita que em 2012 se propôs a fazer o que até então só tinha sido sonhado: construir um computador capaz de debater com humanos.
Como correu o primeiro debate fora das paredes secretas da IBM?
Correu melhor do que eu esperava, em especial o primeiro debate. Foi o melhor desempenho de sempre em termos de refutar a oponente. Fiquei muito contente por ver como muitas coisas que desenvolvemos ao longo dos últimos meses resultaram tão bem. Honestamente, nunca sabemos o que vai acontecer, como é que o debate vai evoluir, que tipos de argumentação o outro lado irá fazer. Neste caso, foi alinhado com aquilo que o sistema antecipou. O sistema usa estágios de confiança para decidir como fazer a refutação. No primeiro debate, vimos que estava confiante o suficiente para responder em força. No final, o sistema compreendeu o confronto essencial do debate e disse que ganhou.
O computador consegue entender questões quase filosóficas, difíceis de reduzir a factos. Como atingiu esse nível?
É a parte que mais me fascina, trabalharmos no gráfico de conhecimento que está a tentar modelar os dilemas humanos. Quando damos um tópico ao sistema que tem este gráfico, ele tenta navegar para os sítios certos e escolher os argumentos de princípio, que podem parecer filosóficos, e integrá-los no discurso. Ao assistir a especialistas humanos em debates, compreendemos que há muitas coisas comuns em diferentes discussões. Somos os primeiros a tentar formalizar isso de uma maneira muito sistemática. A noção de que vamos construir um gráfico de conhecimento capaz de modelar os dilemas humanos é como dizer que todos os debates que temos pela vida fora são similares. Para nós parecem muito diferentes; mas, na verdade, há muitas coisas em comum que podem ser exploradas.
Quer dizer que há uma fórmula comum em todos os debates?
A maioria de nós não tem noção disso, mas é algo que os especialistas em debates sabem. Imagine que estamos a discutir se devemos banir o álcool e a venda de órgãos humanos. Em ambos os casos, há a possibilidade de que a oposição argumente que banir não é uma boa estratégia porque se vai criar um mercado negro. Os humanos em debate compreendem isso de forma imediata, quer seja órgãos ou álcool. Há este argumento do mercado negro. Ora, o sistema tem este argumento modelado e pode usá-lo no momento certo. Pode-se pensar que é fácil: sempre que se fala em banir, introduz-se este argumento. Isso não é bem verdade, porque no caso de se discutir se a amamentação pública deve ser banida, ninguém argumentará com o mercado negro.
O sistema tem de entender a diferença.
Exato. Não é uma questão de ligar palavras-chave, é preciso fazer algo mais sofisticado.
Usar o humor para cativar a audiência
Quando começou o projeto?
Fiz a proposta em 2011, depois de o Watson ganhar o Jeopardy. Houve uma call para propostas de investigadores sobre qual deveria ser a próxima grande aposta e eu propus desenvolver uma máquina que fosse capaz de debater com humanos. Demoraram um ano a considerar todas as propostas e selecionaram o Debater em fevereiro de 2012.
O sistema é baseado no Watson?
Está a usar alguns dos seus aspetos, como as capacidades de reconhecimento de linguagem. Tudo é feito ao vivo, na nuvem.
Na demonstração, o Debater foi sempre a favor de uma questão, não oponente. Porquê?
Foi uma das coisas que considerámos. Nas competições de debates entre humanos, as estatísticas são muito claras em favor da oposição. A oposição ganha 60% dos debates, e a razão é que é mais fácil atacar que defender algo. É mais fácil encontrar as falácias. A oposição só precisa de as apontar. Mas o que queríamos era trazer a máquina ao nível de uma discussão interessante.
Porque decidiram introduzir humor?
Queríamos que fosse interessante e envolvente para as pessoas na audiência. É uma tática retórica: quando as pessoas estão a tentar persuadir uma audiência, usam humor para fazerem valer os seus pontos. Quisemos integrar isso no gráfico de conhecimento. Também achámos que era uma forma de o sistema expressar que não está a tentar passar por um humano. Muitas das piadas referem-se ao facto de ser uma máquina e isso funciona bem.
Qual será o próximo passo?
Vamos fazer evoluir o sistema, estará melhor dentro de alguns meses. Começaremos a pensar em como integrar as tecnologias que desenvolvemos em aplicações de negócio no Watson. E também continuaremos a fazer investigação neste campo. Olhamos para isto como o início de algo - não como o culminar.
Uma aposta para ajudar na educação
Que tipo de aplicações podem surgir a partir deste sistema?
Há aplicações específicas que emergem naturalmente deste projeto. Por exemplo, conseguimos vislumbrar como usar estas tecnologias na educação, finanças, segmento legal.
Tem exemplos concretos?
Na educação, ensinar aos mais jovens como melhorar o seu pensamento crítico e a sua escrita: como debater, como analisar um tópico de forma racional. Se tiver tecnologias automáticas que ajudem o estudante a compreender se está a ir bem ou não, acreditamos que podem ser muito eficientes. Noutra direção, se um analista financeiro precisar de entender rapidamente quais os prós e contras de um investimento, pode usar a tecnologia para fazer pesquisa. Se usar o paradigma clássico do motor de busca, em que digita uma questão e carrega em pesquisar, é preciso ler e entender os resultados, algo tedioso. Esta máquina fará muito desse trabalho. Em vez de motor de pesquisa, começámos a pensar em motor de investigação. É um novo paradigma, em que a pessoa interage com a tecnologia para entender os prós e contras.
Também pode ser usada para ensinar a um advogado como argumentar em tribunal?
Sim, por exemplo.
Quantas pessoas estão a trabalhar no Debater?
Muitas é a resposta diplomática. Começámos com poucos mas a equipa é agora razoavelmente grande. A razão é que é preciso desenvolver muitas capacidades. Foi uma decisão arrojada por parte da IBM em 2012, dizer que queriam isolar estes investigadores e dar-lhes tempo para desenvolverem uma máquina capaz de debater com humanos. Quando começámos, não sabíamos até onde conseguiríamos ir. Isto foi uma das partes mais difíceis, manter a confiança de que íamos conseguir.
Esta é a próxima fronteira da computação?
É a próxima fronteira. Todos os jogos que a comunidade de inteligência artificial considerou grandes desafios desde o início - começou nas Damas, foi para o Xadrez, depois Go - não deixaram dúvidas de que as máquinas são melhores. Está na hora de nos movermos para territórios onde os humanos prevalecem. Os humanos compreendem a linguagem muito melhor do que as máquinas. É difícil, porque a IA não está avançada o suficiente. Explorar este tipo de desafios é um novo território, onde precisamos de fazer investigação. O facto de que ganhámos um dos dois debates hoje é bom, mas os humanos são melhores. Para os investigadores, é um território fantástico. Porque há muitas questões desafiantes a colocar.
Capacidade de gerar novos argumentos
É a máquina decide onde e como ir buscar os dados de que precisa?
O sistema está a usar duas fontes de informação: um é o corpo de centenas de milhões de artigos, o outro é o gráfico de conhecimento que tenta modelar os dilemas humanos. Nalguns casos, o sistema já está a gerar novos conteúdos. O discurso de abertura do debate foi composto por diversas peças, retiradas de artigos diferentes e combinadas com partes do gráfico. O discurso é conteúdo novo que foi escrito por uma máquina. O sistema está a gerar novos argumentos e a usá-los. Nalguns casos, argumentos específicos foram sintetizados a partir de outras coisas.
Por isso conseguiu convencer várias pessoas.
Sim, mas o importante foi ouvir uma discussão interessante entre humano e máquina durante vinte minutos. Essa é a conquista. Se perguntar à audiência, todos concordariam que foi uma discussão interessante. Não tem precedentes: sentar-se a ouvir uma discussão entre um ser humano e uma máquina sobre questões complexas é algo que nunca vimos antes.
Pretendem fazer demonstrações públicas do Debater? Por exemplo, convidando figuras públicas a debater, como fizeram com Kasparov quando enfrentou o Deep Blue?
Sim, talvez. Mas isto é diferente do xadrez, no sentido em que é menos claro como se define um vencedor. É isso que o torna interessante. Penso que o que vimos aqui foi o início de algo e precisamos de continuar, convidar mais pessoas académicas para assistir, e explicar o que conseguimos e não conseguimos, quais as perguntas a considerar, receber feedback. É assim que a ciência avança. O debate é uma forma interessante de demonstrar a tecnologia e é um envelope que permite abrir muitas perguntas aos investigadores.
Tem alguma previsão de quando o sistema estará pronto para a estreia pública?
Acredito que já no próximo ano.