O que é ser homem? O que um homem quiser, diz campanha em Setúbal
"É preciso desconstruir a ideia de que um homem serve para umas coisas e não para outras"
Tito Viana, 38 anos, fala com o DN ao telefone este domingo enquanto cuida do filho de dois anos e meio: "Que é, queres água? O pai dá." Durante toda a conversa, a criança está por perto e Tito vai entremeando respostas ao jornal com a atenção ao filho, que tem a mesma idade das crianças com que trabalha num infantário de Palmela, uma ocupação que escolheu há 17 anos. "Queria mesmo trabalhar com crianças. Depois de acabar o curso de animador sociocultural ainda trabalhei uns meses com idosos mas não era aquilo que queria."
Em geral, assegura, "as pessoas reagem bem". Nunca se sentiu desconfortável, embora "no início notasse que os pais ficavam um pouco cautelosos, observavam-me para ver se sabia mudar uma fralda, por exemplo." Ri. "Senti muita admiração das pessoas quando dizia o que fazia. Quando me perguntavam o que queria fazer e dizia que queria trabalhar com crianças espantavam-se." Atribui o espanto à ideia de que "o homem não tem jeito, é abrutalhado, não é cuidadoso. E as pessoas ficam sempre muito admiradas por ver um homem nesta profissão." Até porque há muito poucos: só conhece outro que faz o mesmo, também em Palmela.
Daí que quando lhe propuseram participar de uma campanha para desconstruir essas ideias feitas Tito tenha aceitado sem hesitar. "Achei a ideia muito interessante e a iniciativa importante. Porque é um abre-olhos, uma chamada de atenção para as pessoas tentarem perceber que não tem de ser tudo da mesma forma.
O seu é um dos rostos da campanha "Sou homem pra isso!", desde quinta-feira em mupis na cidade de Setúbal, por iniciativa da Sociedade de Estudos e Intervenção em Engenharia Social (SEIES). "Apareceu-nos um homem com este mote na cabeça, "sou homem para isso" -- e com a ideia de colocar homens em situações consideradas como tipicamente femininas", explica Vasco Caleira, da SEIES, que descreve como "uma cooperativa na área da cidadania que trabalha nas áreas da igualdade de género, prevenção da violência doméstica e juventude."
A criação dos mupis, nos quais só são representadas "pessoas reais" e que foram feitos sem ajuda de profissionais de publicidade, decorreu da reflexão e discussão de um grupo de cinco homens que durante ano e meio fizeram várias reuniões de trabalho. "Somos poucos porque não queríamos pessoas que nunca tinham feito qualquer reflexão nesta área. E temos consciência de que sem o trabalho que as feministas fizeram nunca os homens iriam refletir sobre isto -- era muito confortável continuar tudo igual."
Concluíram, prossegue Vasco Caleira, que não queriam "criar uma campanha só com homens a fazer papeis tipicamente femininos em casa". Quiseram, conclui, "ir mais fundo a promover a liberdade individual."
Isso mesmo se diz no press release enviado às redações. "A campanha "Sou homem para isso" visa a promoção de igualdade numa perspetiva de liberdade individual através do combate a estereótipos associados ao género masculino. As imagens acompanhadas pela frase "Sou homem pra isso!" são uma clara afirmação de que a condição de homem é muito mais do que o padrão de género enraizado. A escolha das fotografias foi pensada para desconstruir duas áreas profundamente afetadas pela masculinidade tóxica que, direta e indiretamente, afetam homens, mulheres, crianças e famílias."
Essas áreas, especifica-se, são "cuidado e parentalidade" e "liberdade individual". Na primeira, visa-se "combater o estereótipo de que os homens são menos capazes de cuidar e promover a sua responsabilidade e envolvimento neste âmbito"; na segunda desconstruir "os papéis sociais de género de forma a aumentar a liberdade individual, livre de preconceitos e de padrões predefinidos sobre o que é ser homem."
"Deitemos fora as caixinhas onde colocamos a forma como uns e outras se devem comportar", prossegue o texto do press release. ""Faz-te um homenzinho" ou "porta-te como uma senhora" são expressões que sempre foram sexistas e que cada vez fazem menos sentido. Ser homem não é só uma coisa. Ser mulher também não. Somos pessoas. E pessoas que têm o direito de ser livres, de atuar em liberdade, sem prisões. Sem caixas. Os homens não são todos iguais. Estes somos nós, somos de Setúbal, e voluntariamente damos a cara por uma mudança que queremos ver acontecer."
A campanha da SEIES surge no momento em que a L'Oréal está sob fogo por causa de anúncios a um novo desodorizante nos quais usa as frases "é de homem!", "bolas grandes", "vencer o cansaço" e "jogar com sangue e lágrimas".
Essa publicidade foi alvo de uma queixa à Direção Geral do Consumidor por parte da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, na qual se denuncia o que vê como "uma conceção claramente sexista do que seja "ser homem"", e a promoção de "uma identidade masculina que afirma que os "homens" devem ser estóicos, fortes, valentes, determinados de desprovidos de emoção"", levando a crer, segundo a APMJ, que "a abnegação, fortaleza, valentia e a determinação são características identitárias da masculinidade e não de toda a espécie humana, designadamente das mulheres."
A associação, presidida pela juíza desembargadora Teresa Féria, considera assim que a campanha viola a Constituição por "atentar contra a dignidade de todos os seres humanos" e "contribuir para o reforço da hierarquização e da discriminação social", e infringindo também assim o Código da Publicidade, que no artigo 7º proíbe "toda a publicidade que viole os valores e os princípios constitucionais".
Para Vasco Caleiro, um investigador social de 39 anos, com três filhos, que está na SEIES desde 2007 e na sua vida pessoal diz "tentar desconstruir a masculinidade tóxica e tentar usar os óculos da igualdade para tudo", a campanha da SEIES "é um pouco resposta à campanha da L'Oréal, apesar de não ter sido obviamente pensada como tal. Mas ao surgir na mesma altura acaba por funcionar como resposta a uma campanha que assenta em estereótipos de masculinidade tóxica."
Isso mesmo fica claro no citado press release: "O caminho para a igualdade tem que acontecer em conjunto. Mulheres e Homens lado a lado. Se não queremos mais ser vistos como violentos e maus, como autoritários e intransigentes no trabalho, como preguiçosos e inaptos em casa, temos então de transformar a forma como incentivamos meninos e rapazes a responder com violência a situações de confronto, como reforçamos a necessidade de serem dominadores numa relação. Questionemos então o porquê de continuamente sermos forçados a olhar para todas as raparigas que passam e a fazer uma graçola ou enviar um piropo a roçar a brejeirice. Isso faz de nós mais homens? Ou afinal ser homem é "vencer o cansaço" e ter "bolas grandes" como diz uma campanha que saiu há dias?"
Os mupis da série "Sou homem pra isso!" estarão na ruas de Setúbal até ao final de agosto. A seguir, diz Vasco Caleiro, deverão decorrer ações nas escolas da cidade, a partir de setembro, partindo da ideia da campanha. "A ideia é criar um programa de capacitação, com alguma continuidade no tempo. Já começámos a combinar com as escolas."