O padre que todos os anos leva o país e os seus emigrantes até Benfica
Eram apenas 9.00 horas quando os portões do cemitério de Benfica, em Lisboa, esta segunda-feira, abriram. Cá fora, esperava uma dúzia de pessoas e pouco mais, sem fazerem adivinhar a quantidade que ali afluiria durante todo o dia: centenas, oriundas de todos os cantos do país, e até emigrantes no Canadá e em França. Todos com um único destino - visitar o jazigo de um antigo sacerdote, o célebre padre Cruz.
É assim desde 1 de outubro de 1948, dia em que morreu e aqui ficou sepultado. A porta do jazigo abre apenas três vezes ao ano: na celebração do seu nascimento (a 29 de julho), da sua morte e em dia de finados. É um santo para todos eles, mesmo sem o título oficializado.
Para a maioria dos que aqui passam, a primeira memória do falecido sacerdote Francisco da Cruz tem origem numa outra de um familiar devoto. Para Esmeralda, de 74 anos, não foi diferente. Lembra os primos e tios que lhe sussurravam o nome ao ouvido, anos a fio, como se de um Deus se tratasse.
Chegou esta segunda-feira a Lisboa, vinda de Gondomar, Porto. Um dia um familiar convidou-a a visitar o jazigo, no dia da celebração do nascimento do padre, e desde então que é devota à figura. Agora "é a menina que há anos arranja o jazigo", descrevem-na. "Trato da colcha (de renda), ponho aquilo cuidado", explica a própria. "Tudo pelo meu querido padre Cruz", conhecido e reconhecido por ajudar os pobres, os doentes e presos de todo o país.
No início da tarde a Rua Ortigão Ramos, onde tem morada o cemitério, começa a ser invadida por autocarros. Chegam de Valongo, primeiro. Mas há também quem venha de Viana do Castelo e Monção. De repente, forma-se uma longa fila paralela ao jazigo, para onde um de cada vez entra para rezar, com a mão pousada sobre o caixão. Ditam os seus medos e maiores desejos, pedem ajuda. Todos parecem chegar motivados por uma figura que acreditam que os ajudará a resolver os maiores problemas e sonhos.
São muitos os que oram diante da urna, mas "já foram bem mais". "Oh, há uns anos nem se via o portão", conta uma funcionária do cemitério. E até a polícia era canalizada para ali para manter tudo em ordem, lembra. Agora, os tempos são outros. Não só por ser segunda-feira e dia de trabalho para alguns, mas também porque os devotos são, na sua maioria, idosos. E, por isso, cada vez menos. Os mais novos não costumam parar por cá, a não ser como acompanhantes dos pais ou avós.
Talvez daqui a uns anos já não se avistem filas à porta deste jazigo, um cenário contra o qual o padre Dário Pedroso, vice-postulador da Causa de Padre Cruz, está disposto a lutar. "Esperemos que não e acho que podemos conseguir manter viva a sua memória", disse.
Quando o padre Dário entrou na causa, em 2016, estava longe de imaginar a devoção que tantos tinham sobre este padre, confessa. "Em Portugal e não só", referindo-se aos inúmeros livros que já foram escritos e traduzidos em diversas línguas estrangeiras à sua.
Mas foi no país que mais se viveu a sua morte. "Da Sé ao cemitério, exclama-se "um santo morreu", num cortejo espantoso", conta. No dia seguinte à sua morte, confirma-se a notícia nos jornais. A 2 de outubro, lia-se no Diário de Notícias: "Morreu o Padre Cruz, o homem que fez da sua vida uma dádiva constante aos que precisavam de auxílio e amparo".
Nascido em Alcochete em 1859, formado em Teologia em Coimbra, Francisco da Cruz era considerado "o mais sensível dos padres", lembra o vice-postulador Dário Pedroso. "Não havia terra por onde passasse e não visitasse os pobres nos seus bairros, os doentes nos hospitais e manicómios, mas também os presos". E ainda hoje "não há nenhum outro padre em Portugal que se compare a este", garante.
"Era um apaixonado por servir", de norte a sul do país, principalmente os oprimidos. Por isso, mesmo nas épocas políticas mais conturbadas "ninguém lhe tocava". "Os pobres protegiam-no tanto que não deixavam que nada de mal lhe acontecesse", conta Dário.
Na fila para o jazigo, partilham-se histórias deste falecido sacerdote. Evocam milagres nos quais escolheram acreditar, sem pensar duas vezes, mesmo não tendo assistido aos mesmos. "Ai, era um homem tão bom". Tão bom, dizem, que um dia, à entrada da igreja de São Domingues, recebeu uma esmola guardada num envelope de uma senhora e, no minuto a seguir, terá dado o envelope a um pobre que ali passou, sem o ter aberto primeiro. "Eram seis contos". Isto em tempo de fome e guerra, acrescenta o padre Dário Pedroso.
A mais célebre das histórias talvez nem seja esta, adianta. E também se ouve na fila dos que esperam para orar junto do corpo do falecido. Sem dinheiro nos bolsos, o padre Cruz terá pedido para que o deixassem fazer uma viagem de comboio. A resposta foi negativa, mas "o milagre aconteceu", ouve-se: sem explicação, o comboio não andou enquanto não embarcasse.
Foi considerado santo ainda em vida, mas ainda hoje espera pela conclusão do processo de beatificação. O pedido de canonização foi iniciado em Lisboa em 1951, três anos após a sua morte, e encontra-se atualmente em Roma. Aguarda por relatos históricos da população que conviveu com ele e assistiu aos seus feitos. Não existe, remata o padre, por "falta de conhecimento" destas pessoas, que não sabem como é necessário chegar a estas narrações. "Mas lá chegaremos."