Irene Cruz: "O camarim é a minha casa, só entram os meus convidados"

Filha de pai ilusionista, barbeiro de profissão, Irene Cruz desde cedo se habituou ao palco e aos aplausos do público. Disse ao pai que queria ser atriz e ele inscreveu-a a ela e à irmã, Henriqueta Maya, no Conservatório. Mas não o chegou a acabar, tantas foram as solicitações. Estreou-se em 1959 com a peça "A visita da velha senhora", no Teatro Nacional D. Maria II, ao lado de Amélia Rey Colaço, logo se destacou. Tinha 16 anos.
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Na representação, fez de tudo: teatro, cinema, telenovela, dobragens, revista, rádio. Foi a 1.ª atriz portuguesa a participar numa telenovela brasileira, "Os deuses devem estar mortos, 1971. Acabou de fazer 76 anos, há quatro que subiu pela última vez ao palco, em "Amor e Informação". Muitos prémios e condecorações.

Iniciou a carreira no Teatro Nacional D. Maria II. ao lado de Amélia Rey Colaço, tinha 16 anos. Lembra-se como foi?
Fazia de menina - o que eu era - na peça "A visita da velha senhora". Era quase figuração mas, para mim, era muito importante, ao lado daquela gente toda, atores consagrados. Foi a dona Amélia Rey Colaço que mandou perguntar no Conservatório se tinham alguém para representar o papel de uma miúda, disseram-lhe que havia uma que representava muito bem e fui escolhida. Não tinha um papel extraordinário, mas levei aquilo muito a sério.

Entrou logo pela porta grande.
Tive essa sorte e, depois era muito apaparicada, tratavam-me por Ireninha, foi muito bonito. Estudava no Conservatório e acabei por não concluir o curso porque nunca mais parei de fazer teatro. Não consegui fazer as duas coisas ao mesmo tempo, não dava para conciliar. Naquela altura, não havia gente da minha idade para representar e, como eu tinha algum jeito, qualidade, era requisitada por todos. Foi ótimo para mim, não me impingi e ninguém me impingiu. Eu era toda engraçadita, mesmo bonitinha.

Em que momento da sua vida decidiu que queria representar?
O meu pai fazia espetáculos de ilusionismo e eu era sua partenair. Entrava para uma caixa - era pequenina e cabia em qualquer buraco - desaparecia e, quando aparecia, as pessoas batiam palmas, gostava dessa parte, dos aplausos, mas não era das coisa que mais gostava de fazer, era enervante. Eu já fazia imensas coisas, até sabia "escamotear" [fazer desaparecer sem que o público perceba]. Disse ao meu pai que queria fazer teatro, ele procurou onde é que podia aprender a representar, descobriu o Conservatório e inscreveu-me.

Apesar de a profissão não ser muito bem vista nessa altura.
É verdade, mas o meu pai mete-os no lugar. As pessoas criticaram-me por ir estudar teatro, "vais ser atriz, prostituta", diziam, Eram os outros que lhe punham essa fama, não quem lá trabalhava. Havia raparigas que queriam estudar teatro e acabavam por desistir. Eu e a minha irmã, a Henriqueta Maya, mais nova do que eu, não tivemos esse problema. Gostávamos do espetáculo e o meu pai acabou por inscrever as duas filhas no Conservatório. Era barbeiro, tinha a barbearia que era o sustento da família, mas o que ele gostava mesmo era do espetáculo. Tirava fotografias aos apetrechos de ilusionismo que se faziam em Espanha, e que custavam caro, e pedia aos amigos para construir.

Disse que o ilusionismo a enervava. Mais do que no teatro?
No teatro não me enervava, no ilusionismo sim, porque tinha de esconder as coisas sem as pessoas perceberem. E se eu me enganasse? No teatro, quando temos uma falha em cena, há formas de resolver a situação. Tenho uns anos disto, sei como se resolve, volta-se atrás na memória, há todo um jogo interior e do qual o público não se apercebe.

O que é preciso para ser um bom ator?
Esta é uma arte que não é para qualquer um, tem que se amar, não basta gostar. Tem que se amar esta profissão, que é dura.

Refere-se à instabilidade laboral?
Começa por aí. Umas vezes não temos trabalho e, quando trabalhamos, o dia está muito preenchido, com os ensaios, as representações, as noites e fins de semana ocupados. São muitas festas de aniversário dos nossos familiares a não podemos ir. Nunca faltei ao trabalho, cheguei a trabalhar doente. Tive que operar um quisto e disse ao médico que não podia faltar, ele questionou - os médicos nunca percebem estas coisas -, mas lá combinámos a operação para um dia em que estivesse de folga. Tive que prometer que não ia mexer o braço, o que não cumpri. Mas não podia faltar uma semana.

Tem um filho, o pai, o João Lourenço, também trabalha no teatro, como é que foi quando ele nasceu?
Quase que não tive licença de maternidade. Ele nasceu e foi do género: "mãe deixa-me sair", foi muito rápido. Trabalhei até ao último momento e só me fez bem, sentia-me bem, tinha a consciência de que ter um filho não era nada de terror. Fiz o que o médico mandou, ginástica, preparação para o parto, isso tudo e, quando foi o momento, ele estava doido para sair.

Foi há 49 anos, sabia que era um rapaz?
Naquele tempo, não se sabia qual era o sexo, mas também não queria saber, queria ter a surpresa.

Como é que foi conciliar a vida profissional com a vida familiar?
Tinha os meus sogros e, quando ia para uma tournée, levava-o. Ele já mastigava o chão, começou a andar muito pequenino, e fui fazer uma telenovela no Brasil [TV Record, 1971], estava cheia de saudades e a minha sogra foi levá-lo. Ele adorava o meio do teatro, tinha todos à volta dele. Era sossegado, educado, foi sempre uma criança muito fácil de lidar.

Ainda assim, não teve mais filhos.
Sempre quis ter filhos e acabei por ter só um. Mas trabalhava muito e não podia pensar só em mim, tinha que pensar também na criança que aí vinha. Fiquei só com um e chegou. O meu filho passou muito tempo no antigo Teatro Aberto.

Mesmo, assim, não ficou com o bichinho.
Não, entrou para a Força Aérea, tirou o curso de engenharia aeroespacial. Aparentemente não tem nada a ver com o teatro, mas ele foi para a área certa, por amor. Sempre disse que ele iria para onde quisesse. Dizia-lhe: "Serás o que quiseres, mas tens de ser bom no que escolheres". E tenho duas netas, 15 e 19, cresceram muito rápido.

Pode dizer-se que a Irene Cruz fez tudo o que está ligado à representação.
Tudo, teatro, televisão, rádio, dobragens, cinema, revista, era muita coisa. Era muito absorvida pelo trabalho e tudo mais ou menos ao mesmo tempo. Comecei a fazer dobragens com Abre-te Sésamo [1976] e fiz todas as séries infantis da altura. Durante a manhã e à segunda-feira [dia de folga], fazia dobragens; à tarde, tinha ensaio; à noite e ao sábado, tinha espetáculo à noite e ao domingo, matinée. Era nova, tinha estaleca.

Vive sozinha?
Vivo com os meus dois cães, não sou capaz de passar sem animais, o Boss (jack russel) e Jenny (labrador], o nome de uma personagem que interpretei, passeio e faço ginástica.

A última vez que pisou o palco foi em 2014/2015, com a peça "Amor e Informação", gostava de voltar?
Gostava, fisicamente estou bem, o que me falha é a memória, mas há treinos para a memória e podia fazer coisas em televisão.

Qual foi a peça que mais gostou de fazer?
Várias. "Ouçam como eu respiro" [1982], teve muito tempo em cena, andei por o país, sempre com casas esgotadas, o que me dava muito prazer. Emagreci quilos, estava esgotada, mas via a plateia cheia e perdia o cansaço. Gostei muito de fazer "Mãe coragem e os seus filhos" (1986), com a Eunice Muñoz, o "Círculo de giz caucasiano (1976), foi a primeira vez fizemos uma peça de Brecht (antes do 25 de Abril. a censura não deixava), estivemos mais de dois anos em cena.

Como é que era a relação com a crítica?
Tive sempre boas críticas, não tenho razões de queixa, mas havia críticas muito mazinhas, via isso por outras colegas. Eu fui sempre muito amada pelo público e isso também ajuda, pelo público e pelos colegas. Também sou uma pessoa simples, não me armo.

Nem com todos os prémios que recebeu?
Não, tive bons ensinamentos do meu pai e da minha mãe.

Foi a primeira portuguesa a participar numa telenovela brasileira, em 1971 em "Os deuses estão mortos", não se arrependeu de não ter ficado no Brasil?
Gostei muito de fazer essa telenovela, fui muito bem tratada, mas tinha aqui a minha vida, o grupo de teatro, embora eles quisessem que eu ficasse no Brasil.

É uma das fundadoras do Novo Grupo de Teatro, em 1982, que nasceu do Grupo 4 e que, a partir de 1976, se tornou no grupo residente do antigo Teatro Aberto. Como é que foram esses anos?
Bons anos. O antigo teatro da Praça de Espanha foi construído com o nosso dinheiro e de pessoas que tiveram a generosidade de nos apoiar, doando materiais, por exemplo. Conheciam o nosso trabalho e quiseram contribuir para termos um espaço próprio.

Estamos no seu camarim do novo Teatro Aberto, é a sua segunda casa?
O camarim é a minha casa, só entram aqui os meus convidados, tenho aqui tudo, casa de banho com chuveiro, tudo o que é preciso para me vestir e preparar.

Como foi a experiência no Parque Mayer?
Foi uma grande lição, era muito novinha, mas foi excelente para a minha evolução. Deu-me uma bagagem e experiência muito grandes. Lidar com gente diferente do que estava habituada, encantava-me. Adorava observar os bailarinos.

Mas qual é a sua praia?
O teatro clássico, em segundo lugar, a telenovela. Estudei, mas essencialmente, aprendi com os mais velhos, punha-me à espreita para ver como faziam, como falavam. Quanto estava a preparar um papel, às vezes, perguntava ao meu filho o que achava. Era muito direto, felizmente, não fazia favores, era o meu seguro. A gente não se vê, não se ouve, pensamos que estamos a ir muito bem e não estamos.

Como é que se preparava para interpretar uma personagem?
Temos de decorar, decorar e, depois, limar, limar, para tentar perceber a personagem, não é fácil. Gosto muito de falar com as pessoas na rua, meto conversa e, muitas das minhas personagens, era aí que as ia buscar. Gosto muito de observar as pessoas, seja homem ou mulher, fico a olhar. Quando vejo alguém com uma característica diferente, começo a construir uma personagem, às vezes, só apanhada e tento disfarçar.

Pode dizer-se que o Novo Grupo é uma consequência do 25 de abril?
Acabou por ser, já existíamos como Grupo 4 [Rui Mendes, Morais e Castro, Irene Cruze João Lourenço), um grupo independente que foi fundado em 1966 e que, depois do 25 de abril, foi muito politizado. O João Lourenço saiu, eu ainda fiz mais uma peça, e criámos o Novo Grupo (Irene Cruz, João Lourenço, Francisco Pestana e Melim Teixeira), em 1982. A nossa primeira peça foi "Ouçam como eu respiro".

Algum papel que gostaria de ter feito?
Não sei, fiz tantos, talvez a Joana d´Arc, fiz essa personagem no Conservatório, como prova e não a cheguei a representar num palco, tem uma ternura muito grande que me toca. E é uma personagem que se pode fazer com mais idade e eu não estou assim tão velha.

Está muito bem, cuida-se muito?
Cuido-me um bocadinho, só almoço, tenho cuidado com a alimentação, durmo bem, mas não gosto de deitar nem acordar muito cedo, E na pele uso creme nívea, o da caixinha azul. Deixei de fumar em 1978, por causa das minhas cordas vocais, estavam num estado lastimoso, fumava quatro maços de cigarros por dia. O médico disse que não podia continuar a trabalhar se continuasse a fumar, cheguei a casa, guardei um maço numa gaveta e nunca mais o tirei.

Se pudesse pedir um desejo, qual seria?
Trouxe a lâmpada e o génio? O meu desejo é continuar com saúde que tenho e a cabeça que ainda pensa. E voltaria a trabalhar em teatro.

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