"A morte de uma namorada foi algo muito forte na decisão de ser padre"
O seu percurso está marcado pelo acompanhamento espiritual aos outros, pela importância que dá ao saber conversar, à moral, ao sofrimento, ao descanso, à educação, ao ambiente e à bioética.
É no velho palacete da Lapa, conhecido como a casa dos padres, que nos recebe numa tarde soalheira. Primeiro quis saber o porquê da entrevista, mas quando explicámos que tinha que ver com o seu novo desafio, com o seu percurso dedicado ao acompanhamento espiritual, aceitou. A conversa, numa das salas do palacete que já fora capela, levou quase duas horas do tempo de cada um.
Sim, tempo. Falou-se de tempo, aceleração, descanso, e sobre quem "não descansa, não avança". Falou-se do frenesim diário, das muitas responsabilidades, mas também da necessidade de saber conversar, dialogar, saber estar, de educação e de saber educar, de sentido crítico, de ponderação e discernimento, de avaliar e arriscar. Falou-se de acompanhamento espiritual e de como este pode ser uma espécie de terapêutica.
Falou-se do sofrimento, das perdas e das faltas que nos levam a ele, do direito a ser feliz ou do dever de procurar a felicidade. Falou-se dos tempos de hoje, do paradigma tecnocrático a querer sobrepor-se ao ético, à moral. Falou-se de bioética, de identidade ou ideologia de género e de como as mudanças introduzidas nas leis podem influenciar a sociedade.
Falou-se de tradicionalismo na Igreja, da tentativa de regresso ao passado numa busca de identidade, o que é "um erro". Falou-se de Vasco Pinto Magalhães, nascido a 14 de julho de 1941, em Lisboa, numa família lisboeta e cristã. O segundo de seis filhos, que assumiu o papel de mais velho após a morte de uma irmã. Falou-se do primeiro momento em que se sentiu tocado para o sacerdócio, com 12 anos, depois de outros momentos mais fortes, construtivos, que o levaram a enquadrar a realidade numa perspetiva cristã.
Vasco Pinto Magalhães fez escola no Colégio São João de Brito e escolheu Engenharia Mecânica para formação, mas no quarto ano desistiu e entrou na Companhia de Jesus. Fez Filosofia na Universidade Católica e Teologia em Roma. Do pai recebeu o gosto pelo desporto, durante muitos anos jogou râguebi, da mãe a serenidade, a vontade de pacificar ambientes. O seu percurso está marcado pelo trabalho na Pastoral Universitária, junto dos jovens, pelo acompanhamento espiritual, pela dedicação às letras, ainda hoje integra o conselho de direção da revista Brotéria, ao ambiente e à bioética, foi cofundador do Centro de Estudos de Bioética, integrando ainda a sua direção.
A Companhia de Jesus deu-lhe um novo desafio: ser pároco, a proximidade com as pessoas de uma forma diferente. E do Papa Francisco diz que veio exatamente para aproximar a Igreja das pessoas, de todas, sem tabus e preconceitos. Aqui fica o registo.
Lembra-se do dia ou do momento em que percebeu que queria ser padre?
Lembro. Foi um caminho que levou muitos anos, não há propriamente um momento, foi uma sequência que foi crescendo. Lembro-me de pensar no assunto quando ainda era muito miúdo, com uns 12,13 anos. Foi numa missa, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, ouvi uma frase e senti-me muito tocado - "Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?". Fiquei surpreendido e a partir daqui esta ideia foi-me acompanhando sempre como uma pergunta, depois o contacto com os padres no Colégio São João de Brito fazia que de vez em quando o tema viesse ao de cima. Qual é o meu futuro? O que posso fazer? Eram perguntas presentes em mim.
Tomou a decisão já na faculdade?
Houve um elemento muito forte e bonito que me levou à decisão: a morte de uma namorada. Foi algo muito forte no sentido construtivo, de agarrar a vida, de olhar para a realidade e de perceber como é importante encarar a morte, não como uma tragédia ou uma desgraça, porque essa namorada tinha-me enriquecido muito espiritualmente e humanamente, mas no sentido de como enfrentar a realidade, com dor, mas sem drama ou só com o drama possível.
Onde estava nessa altura?
Estava na faculdade. Tinha 21, 22 anos. Mas foi a relação com ela que me ajudou muito a descobrir este caminho. Depois houve um outro momento que teve que ver com a leitura de um livro do padre Teilhard de Chardin, jesuíta francês que, de alguma maneira, fez o meu quadro de visão do mundo. Com este livro encontrei o meu enquadramento, percebi que o cristianismo poderia fazer todo o sentido, não só pela espiritualidade, mas pela visão cristã do mundo. A dinâmica era construtiva, positiva e fazia todo o sentido.
E só depois destes momentos é que decidiu abandonar o curso de Engenharia e seguir o sacerdócio?
Foi. Estava no final do quarto ano de Engenharia Mecânica e decidi sair para fazer o Noviciado na Companhia de Jesus, foi em 1965. Depois fiz o curso de Filosofia na Universidade Católica e o de Teologia na Universidade Gregoriana, em Roma.
Porquê a Companhia de Jesus?
Eram os padres que eu conhecia, identificava-me com eles. Fiz o liceu no Colégio São João de Brito. O padre Chardin era um jesuíta, foi um grande cientista, teólogo, filósofo, fez uma síntese boa entre a ciência e a fé, o que foi muito importante para mim.
A partir do momento da decisão, teve dúvidas?
Dúvidas não, mas alguns sobressaltos, crises. É normal, não se cresce em linha reta. Na vida não há uma linha reta.
Como é que a família olhou para essa opção?
De modos muito variados, mas com aceitação. Interrogando-me, mostrando-me outros lados, mas não houve oposição.
Era uma família crente?
Sim. Nasci num ambiente cristão, era um valor saudável, mas nada de muito obsessivo.
Os pais foram importantes para si?
Sim, claro. O meu pai - engenheiro Vasco Pinto Magalhães - queria que eu fosse para o Colégio Militar. O meu avô era militar. Mas um problema de saúde impediu a minha entrada e fui para o Colégio São João de Brito, onde estudei. O meu pai era uma pessoa muito ligada ao exercício físico, um grande desportista, sempre achou que o desporto era um grande caminho para a educação, que não se podia separar dos currículos escolares. Foi ele quem avançou com a construção dos estádios universitários de Lisboa e do Porto. Fundou o CDUL.
Ele foi um dos impulsionadores do râguebi em Portugal...
Foi. O râguebi para ele era uma fonte de inspiração educativa. Ele lia muito, estava muito inspirado na edução dos colégios e das universidades inglesas onde o râguebi era um fator educativo. Era um desporto ainda amador e isso era condição fundamental para ele. O profissionalismo traz coisas ambíguas, traz o negócio, a pessoa acaba por já não estar pela causa mas pelo que ganha. O profissionalismo torna o desporto um espetáculo, onde não se sabe perder, em vez de verdadeiramente um jogo. O râguebi para ele tinha duas coisas muito importantes: o espírito de equipa, não se pode ser individualista, e é duro, não é violento, obriga a não ficar caído no chão a fazer fita.
Dos pais, quem o marcou mais, a mãe ou o pai?
Os dois, mas de um modo muito diferente. O meu pai foi pelo que disse, a minha mãe era uma pessoa serena, muito cuidadosa em criar um ambiente de paz, e eu recebi muito isso dela. Foi algo que me orientou muito na minha vida, procurar pacificar, trazer paz às situações, superar as pequeninas e grandes guerras. Foi também o que fez o Evangelho mexer muito comigo, porque Cristo é o Príncipe da Paz.
Fala de paz e eu vou já para o sofrimento. Tem uma obra sobre este tema. Porque sofrem hoje as pessoas?
Bem, eu diria que o sofrimento tem como fonte a perda e/ou a falta. Sofremos porque perdemos alguma coisa ou porque qualquer coisa nos está a faltar, desde as materiais à saúde, desde a alegria à vontade, e isso cria-nos pressão. É algo que nos ataca. O sofrimento está ligado ao crescimento, à experiência da perda e da falta, que não são corretamente integradas neste processo. A perda e a falta fazem sofrer, mas podem ser uma grande fonte de maturidade, porque nos põem à prova e obrigam-nos a ser frontais. A educação não deveria iludir o sofrimento, mas é uma das coisas que mais se tenta fazer, educar sem sofrimento. É claro que não vamos pôr as pessoas a sofrer, mas temos de perceber que para se crescer, sofre-se.
Quando se diz "não se cresce sem sofrimento" é mesmo verdade...
É preciso largar uma fase para chegar a outra. É preciso arriscar, aprender a perder para se ganhar, e às vezes dói.
Mas hoje há mais sofrimento? As gerações mais novas sofrem mais do que as anteriores pelas solicitações que têm?
É um juízo difícil. Cada época tem o seu sofrimento próprio. Tudo está circunstanciado. Hoje, aumenta-se e muito as possibilidades e, portanto, as comparações e as competições são uma fonte de grande sofrimento. As pessoas vivem a comparar-se umas com as outras, com ideais um bocadinho fictícios, e mais facilmente sentem os défices. A isto junta-se a falta de tempo para mastigar e digerir tudo. Não quer dizer que haja mais sofrimento, é o sofrimento próprio deste tempo, mas o pior de todos os sofrimentos é o imposto pela injustiça, pela maldade, pelas guerras, pelo genocídio. Sofre-se muito por falta de paz, porque as grandes perdas são a nível da segurança, do sentido e do lugar. E há de facto pessoas que não sabem qual é o seu lugar no mundo.
Quando fala da perda de segurança...
Falo de três perdas: a segurança, vivemos numa enorme insegurança, a perda de lugar e a perda de sentido. São perdas terríveis e que podem acontecer a muitos níveis: biológico, psicológico, cultural e espiritual...
É o perder um pouco a condição humana, não é?
Este é o tripé que nos mantém. De onde vem a segurança? Do dinheiro, da saúde? Também, mas não só. Também vem das relações saudáveis, fraternas.
É esse o desafio dos tempos de hoje? Saber onde estar, para que viemos e que sentido damos à vida?
Exatamente. Quando não o sabemos, facilmente somos rejeitados ou descartados, e há pessoas que se sentem descartadas, e que o são. Pessoas que não encontram o seu lugar nem o seu espaço no mundo e que, por isso, muito dificilmente se sentem felizes. A competição ajuda a esta situação, porque todos querem um estatuto muito elevado, ninguém aceita ficar a um nível em que se ache inferior - mas que, se calhar, não o é, porque pode ser um nível em que se presta um grande serviço. Mas a tendência é para pensar: se não tenho lugar, se não encontro sentido para a minha vida, se não sei o que cá ando a fazer e para onde tudo isto me leva... não me sinto bem.
Essa é uma das questões da psicologia...
É, claro. Para que vives? Para ganhar dinheiro, para te divertires, para seres feliz? As pessoas dizem muito "tenho direito a ser feliz", e não há maior disparate. Tenho é o dever de procurar a felicidade.
Não é um direito adquirido.
Não, senão tinha de haver alguém, um outro, com o dever de me fazer feliz. As pessoas são muito infelizes por acharem que têm direito a ser felizes e esquecem-se de que têm é o dever de procurar a felicidade, com realismo, com boa vontade, com ajudas, com relações fraternas.
O título que escolheu para a sua obra sobre o sofrimento foi precisamente uma questão que se coloca a muitos crentes e não crentes: "Se Deus é bom, porque sofremos?" Tem uma resposta?
Pode dar-se uma resposta clarificando dois conceitos, o de Deus e o de Bondade. E, depois, explicar que, se calhar, o sofrimento não é necessariamente mau. Mais uma vez, o sofrimento é o preço do crescimento - quando uma mãe sofre para ter um filho é o preço de um grande momento, porque tem de dar muito de si; quando se sofre para se fazer uma tese é o preço de um objetivo. O que está errado é o nosso conceito de Deus, que, muitas vezes, é uma projeção nossa, consideramo-Lo um Super-Homem, quando não tem nada que ver. A palavra Deus está carregada de sentidos falsos, está carregada de projeções de como deveria ser. Se é assim, então, é um ídolo, não Deus. O Deus cristão é amor, não é senão amor. Se Deus é bom, então o que é o bom e o bem? O bem é aquilo que me faz ser eu próprio, o que me faz encontrar comigo mesmo e a ser quem sou. O amor não é facilitar nem fazer festinhas, o amor é fazer crescer, e às vezes isso dói.
Um amor que não é exigente não é amor?
Por exemplo, em relação aos filhos vê-se melhor: tenho de exigir de um filho que comece a andar e a falar, etc. Às vezes dói, porque sou bom, mas tenho de exigir. Por isso, se imaginamos que Deus deve ser um Pai Natal, que deveria corrigir todas as faltas de salário, desempregos, temos a imagem errada. Isto não é missão dele, é a nossa. A grande questão de fundo - quanto à pergunta "se Deus é bom, porque sofremos?" - é corrigir a imagem de Deus, porque muitas vezes a imagem que temos é uma idolatria, é o que projetamos.
Quem deve corrigir essa imagem de Deus que está errada? A Igreja, os padres, os crentes?
Os crentes têm a obrigação de a mudar e os outros têm de os ajudar a perceber que é um conceito complexo, porque há outras religiões que se projetam num ídolo. Há os que dizem que não são crentes mas que têm o seu Deus, e o seu Deus pode ser o dinheiro e o sentir-se bem, o seu Deus pode ser aquilo que lhes comanda a vida e que funciona como um Deus, porque é nisso que acreditam. Mas aos cristãos compete perceber o que é bom para todos, não é só uma questão religiosa, é também ética, e que o amor é o que verdadeiramente nos cultiva.
Tem-se dedicado muito ao acompanhamento espiritual, algo de que se ouve falar muito na Igreja. Este acompanhamento é quase uma exigência da sociedade de hoje?
Penso que não é uma exigência, é mais um despertar para a necessidade de pedir ajuda. O acompanhamento espiritual é algo que vem da tradição da Igreja, desde sempre, com os diretores e conselheiros espirituais. Hoje não se vai tanto buscar os diretores espirituais, mas os coaches, os psicólogos ou os psiquiatras.
O acompanhamento espiritual é uma terapia?
Também é. Tem qualquer coisa de terapêutico porque não se pode separar da psicologia nem da sociologia. Somos seres psicoafetivos e sociais, a espiritualidade e a fé não são mais uma coisa na vida das pessoas: são o modo como organizam o todo, são o sentido que se dá à realidade, e que pode ser um sentido espiritual ou até ateu, mas não é mais uma coisa. A religião é o que me religa ao essencial, é o que me liga ao todo que eu sou, ao biológico, ao psíquico e ao sociocultural.
As pessoas reconhecem mais facilmente que precisam de ajuda?
Sim. Não quer dizer que vão buscar essa ajuda à Igreja como iam antigamente, mas vão ao psicólogo, ao psiquiatra, aos coaches, aos grupos de ioga, a viagens de libertação interior, etc.
E o que procuram nesse acompanhamento espiritual, um sentido para a vida, a segurança, um lugar para estar?
Sim. Procuram algo no seu todo, porque alguma coisa está a falhar. Tanto pode ser porque passam por uma situação muito difícil de lidar com a morte, com a rutura, com o seu próprio crescimento ou até de lidar com o esclarecimento de alguns conceitos religiosos, que em vez de as ajudar estão a perturbar. Um pedido de ajuda a um técnico, psicólogo, psiquiatra, significa que a pessoa está numa procura incessante à qual não está a conseguir dar resposta sozinha. E quem procura a direção espiritual dentro do cristianismo vai à procura de alguém que lhe dê uma palavra libertadora.
Procuram uma vivência sem desespero ou com angústia...
Exatamente. Procuram dar um sentido de cura espiritual, de cuidado espiritual. E isto pressupõe muita paciência, muita pedagogia e muita atenção, sobretudo muita atenção para escutar cada um.
É isso que faz...
É o que procuro fazer, escutar e perceber o que se passa naquele caso, porque cada caso é um caso.
Acompanha muitas pessoas agora?
Muitas.
Quantas?
Não tenho números, há situações que estão na fase em que o acompanhamento é muito frequente, semana a semana ou de 15 em 15 dias, mas há outras que vêm de trás, em que é só uma vez por ano, o que significa que fizeram o seu caminho, que já têm os seus apoios e uma certa autonomia. O objetivo deste acompanhamento é levar as pessoas a encontrar a sua autonomia, não é mantê-las dependentes, que é um dos perigos de outro tipo de ajuda. A psicanálise, por vezes, cria dependências. Quando se chega a determinada fase, é preciso dizer: agora vai.
Faz acompanhamento a famílias. Na sociedade de hoje as famílias precisam de muita ajuda?
Precisam, são atacadas por todos os lados, na sua estabilidade, na sua integridade, etc. É difícil manter uma família, sobretudo uma família numerosa. Há dificuldades com o dinheiro, com o suporte da casa, mas também na compreensão dos outros.
O que poderia dar-se às famílias para que não vivessem com tantas queixas de falta de tempo, para ouvir os outros, estar com os outros, para descansar... Há alguma coisa que se possa fazer?
Não creio que tenha uma resposta. Há muitas respostas. Depende de cada caso e, depois, dentro das famílias depende muito da profundidade da relação, não só do casal mas também com os filhos. A relação pode ser ótima, mas pode ficar vulnerável e, quando rompe, adoece ou fraqueja, o castelo pode começar a desmoronar.
Nas famílias tudo depende das relações...
A segurança, a paz e o descanso vêm da relação. Eu diria que tudo vem da qualidade da relação. Andamos sempre à procura da qualidade de vida, quando a qualidade de vida vem da qualidade das nossas relações.
Não vem de ganhar mais, de ter mais tempo?
Pensamos que vem do ganhar mais, do ter mais tempo livre, do ter saúde, mas isso não chega. Repito: o que dá qualidade à vida é a qualidade das relações. As relações são construtivas, enriquecem, pacificam, dão segurança... ou não. Por isso, a grande educação é a educação para a relação.
O Papa Francisco fala nisso...
A educação é muito importante. O Papa Francisco fala sobre isto e sublinha exatamente o cuidado com a relação, desde namorados, desde que as pessoas se conhecem, não é depois, quando aparecem problemas posteriores. É o ter cuidado para namorar bem. Fala do acompanhamento aos casais novos, do cuidado que se tem de ter para que mantenham um diálogo vivo, aberto e construtivo.
Mas há circunstâncias que fazem que o casal se veja pouco, não fale...
Há. Hoje um casal passa mais tempo no trabalho e com os colegas do que em casa. Os pais, por vezes, não têm tempo para falar com os filhos, alguns nem os veem. É por amor a eles, porque estão a trabalhar para lhes garantir um futuro, um curso universitário, mas há aqui um engano. Se uma criança sair da infância sem pai ou sem mãe, sem o afeto amadurecido, ou com um afeto angustiado ou perdido, depois vai andar à procura dele. Há muitos problemas afetivos e sexuais que vêm daqui.
Hoje não há tempo para a linguagem dos afetos ou também há o medo dessa linguagem?
Há as duas coisas: o problema do afeto, às vezes, é a pressa, pois precisa de tempo, de calma, senão fica coisificado.
É afeto que falta aos jovens de hoje?
Volto à educação. Educar é levar alguém a saber pensar pela própria cabeça, a fazer escolhas com discernimento - e não só porque é o que dá mais dinheiro ou porque está na moda, é facilitar a possibilidade de dividir a vida em grupos saudáveis, é o ensinar a descansar, uma coisa que também não se faz, a desenvolver as qualidades de cada um, sem comparações exageradas. Vivemos numa sociedade de modas, muito competitiva e tocada pelo excesso de comunicação, redes sociais, onde tudo entra, o melhor e o pior, sem filtros. E isto pode ser terrível, porque os jovens são muito sensíveis.
Há profundidade espiritual nas gerações mais jovens?
Há e grande. Eles sentem muito a necessidade de trabalhar mais essa profundidade. Há o desejo, mas não há oferta. Deveríamos estar todos muito mais dedicados a oferecer esse enquadramento.
Foi com o intuito da profundidade espiritual que se avançou para a criação dos centros da pastoral universitária aos quais esteve sempre muito ligado?
Sim. Ou seja, foi com o intuito de dar aos estudantes universitários um espaço de reflexão, crítico, de convívio saudável, onde se pudessem expressar. Criar espaços de diálogo entre a fé e a razão, entre a fé e o mundo afetivo, entre a fé e a sociedade. O objetivo era criar espaços de formação integrada, para que a fé não fosse mais uma coisa, mas ser a interface que liga as coisas.
Os jovens universitários ainda procuram isso?
Procuram. Apenas chegamos a uma minoria, mas é preciso lidar com as minorias sem complexos. Acredito que as minorias podem ser fermento. Pode haver a sensação de dificuldade porque não temos as praças cheias, mas isso não significa que não haja pessoas convictas e saudáveis que sintam que podem ser fermento, que sintam que podem pôr a mão na massa com coragem. É o que o Evangelho pede.
As minorias não podem ter que ver com a forma como a Igreja tem passado a mensagem?
Pode. Por vezes passa de forma muito legalista outras muito tradicionalista, e assim não pega. O que Jesus veio inovar foi no modo de comunicar. A palavra Evangelho quer dizer boa notícia, boa comunicação. E a boa notícia que temos para dar é o humanismo. É boa no sentido em que humaniza, por isso deveríamos ser mais especialistas em comunicação.
Fala da Igreja instituição
Sim, mas deveríamos ser todos, porque todos deveríamos ter uma mensagem boa a passar. Nem sempre é da melhora maneira, mas há de tudo.
Há quem diga que um dos problemas de hoje em relação à religião já não é o ateísmo mas a indefinição. A mensagem não deveria combater este contexto?
Isso já é um passo em frente. É o admitir que o que temos não chega e que o resto não vem de fora, temos de o encontrar dentro da Igreja. O caminho tem de se ir fazendo com vários fermentos e nesse sentido é um caminho de elite, o que é bom. Há elites boas e más. Há o elitismo, que é um disparate, mas há a elite daqueles que escolhem o caminho de transmitir, de querer fazer opções e de ter a coragem para resistir à tentação do imediato.
A tentação do imediato leva-nos a outra obra sua - Só Avança Quem Descansa. O tempo hoje é uma limitação?
É. Não há tempo para nada e isso perturba os ritmos mais humanos e básicos, porque toda a vida é cíclica e ao mesmo tempo rítmica. Quando perturbamos os ciclos e os ritmos entramos em conflito dentro de nós próprios. Quando não respeitamos os ritmos - porque tudo é rítmico, o coração bate a um ritmo, o respirar é um ritmo, o dormir é um ritmo, o digerir é um ritmo - estamos a violentar a realidade, que é rítmica e cíclica. Crescemos por etapas e por ciclos e isto precisa de tempo. Hoje há a tentação de formatar à pressa e isso tem o efeito contrário. É preciso a infância correr bem para chegar à adolescência, é preciso viver a adolescência para chegar à juventude. Quando isto é comprimido porque queremos que as pessoas sejam adultas à força, elas tornam-se infantis.
Mas é a pressão da sociedade de hoje...
Há muitas responsabilidades para se fazer muita coisa. Depois dormimos mal, acordamos mal, fazemos férias que são mais em quantidade do que em qualidade, e vimos cansados das férias... é um disparate. Porque até nesta questão entra a competição. Vai-se a várias praias porque toda a gente está lá, vai-se aqui e acolá porque está na moda. Mas, na verdade, o que se fez durante as férias e onde se foi? Tem-se medo de estar, de perder tempo - ou melhor, de ganhar tempo. Se perguntar a alguém: tiveste tempo para conversar com pessoas sem ser a despachar? Se calhar não, e o que nos descansa é a relação. Numa relação boa não tenho de me defender, não tenho de provar nada, sinto-me aceite como sou e é isto que descansa.
É essa a explicação para a frase "só avança quem descansa"?
Sim. Sem descanso não há crescimento, para os bebés ainda aceitamos que assim seja; para os idosos também, mas para os que estão no meio, não.
A falta de descanso tem que ver com as políticas laborais?
Claro. Hoje pensa-se que quem trabalha mais horas é melhor do que os outros. Não é verdade. A qualidade não é quantidade.
O mundo laboral está assim e parece não mudar...
Tem de mudar. Lembro-me de um jovem que foi trabalhar para um país nórdico e, com a ganância de fazer mais do que os outros, ficava sempre depois do horário de trabalho. Pouco tempo depois o chefe chama-o e pergunta-lhe: "O que se passa? Não consegues cumprir as tuas tarefas dentro do teu horário? Se não consegues não és bom para este laboratório. Ou sais à hora dos outros ou não serves." Isto é saudável. O ficarmos todos depois do horário é uma perversão do mercado de trabalho, porque o voltar para casa, o poder fazer outras coisas, o estar com os filhos sem ser à pressa descansa e ajudaria, talvez, não a trabalhar mais mas a trabalhar melhor.
Há uma parte da sua vida de que nos falta falar, que é o facto de pertencer à direção da Brotéria, a revista dos jesuítas com mais de 120 anos, e de integrar o projeto que a vai tornar um centro cultural. Foi isso que o trouxe do Porto até Lisboa?
Estive no Porto duas vezes (18 anos), mas vim há três anos para integrar este projeto de transformação ou de evolução da Brotéria em centro cultural. É um projeto que continuará a incluir a revista, não a elimina, pelo contrário, faz que seja um polo unificador das várias atividades culturais que pretendemos lançar neste novo espaço.
Qual é a importância de os jesuítas terem um centro cultural dentro de Lisboa e em parceria com a Santa Casa de Lisboa?
A ideia é ter um espaço de diálogo intercultural, de diálogo com as culturas urbanas. A própria revista precisa de dialogar, tem estado aqui fechada neste palacete da Lapa, que hoje já fica um pouco fora do circuito lisboeta. Na zona para onde vamos, o antigo edifício da Hemeroteca, estamos mais no meio do mundo e integrados no que foi a casa-mãe dos jesuítas e que hoje é o espaço da Santa Casa da Misericórdia, ao lado da Igreja de São Roque. É um espaço que também nos diz alguma coisa do ponto de vista histórico, mas a ideia não é olhar para trás, a ideia é fazer que a revista também saia de si própria e dos seus assinantes para ter também uma dimensão de diálogo intercultural. É estar presente onde as pessoas estão e manter, de alguma maneira, a porta aberta para que as pessoas possam entrar e sair. É ir ao encontro de uma dimensão mais pastoral, mais missionária dentro do próprio país. A ideia missionária não está abandonada, só que antigamente era mais para fora do país e hoje já vivemos num mundo intercultural. Como é que a Igreja entra neste mundo e como pode passar a sua mensagem? Através do diálogo.
Essa é uma das prioridades do Papa para a Igreja, é também então uma prioridade da Companhia de Jesus para os próximos anos?
É uma das grandes prioridades ligada ao discernimento das circunstâncias, não só para fazer uma leitura da realidade, mas também para fazer propostas para o mundo de hoje. Faz parte das grandes linhas mestras para todo o mundo este tipo de presença, por escrito, por imagem e com encontros variados.
O Papa Francisco, jesuíta, adorado pelos crentes, mas com grande oposição dentro das hierarquias da Igreja. Como olha para esta oposição? É um lado da Igreja que tem de mudar?
Evidentemente que tem de mudar. Havia muitas coisas que se estratificaram no sentido negativo e há um medo em relação ao futuro muito generalizado, um medo que surge por não se saber bem onde é que tudo vai parar. Mas é preciso aprender a viver nesta instabilidade com algum sentido e sem o medo de perder o pé. Quando se avança há sempre reações. O mundo é feito de dois polos, agir e reagir. É verdade que este Papa tem feito de forma muito concreta o que vem do Concílio Vaticano II, que o Papa João Paulo II já tinha tentado implementar e que o Papa Bento XVI tinha dado substância, embora numa linha mais intelectual. Mas Francisco vem exatamente para pôr a Igreja no contacto direto com as pessoas, com todas as pessoas, sem tabus e com proximidade. Tem lutado por isto, o que gera fatalmente reações.
Reações dos setores mais conservadores, são esses que lhe fazem oposição?
Eu diria dos setores mais tradicionalistas. Há o medo de perder a identidade, mas é um erro pensar que se vai buscar identidade voltando ao passado. Por outro lado, também creio que estes setores mais tradicionalistas surgem por uma atitude, reação natural ao ver que muito se fala dos grandes problemas internos da Igreja, dos desvios mais variados, da diminuição das vocações, da Igreja diminuída em tanto lado, do crescimento de múltiplos movimentos não católicos. Diante disto gera-se um desejo de atribuir culpas a alguém e, de certa maneira, foi buscar-se a culpa ao Concílio Vaticano II.
E é?
O Concílio Vaticano II está marcado pelos anos 1960, que foram riquíssimos mas que abriram também muitas portas com que as pessoas não sabem lidar. E, diante desta realidade, há pessoas que querem fechar portas, porque isso lhes dá segurança.
Diante do mundo de hoje é possível fechar portas?
Acho que não, mas há quem pense que isso pode resguardar, pode dar integridade e unidade. É um erro, o caminho não passa por aí, não passa por voltar ao passado.
Quando se fala do regresso ao passado fala dos grupos conservadores, dos grupos que trouxeram de novo as missas em latim. Não é uma forma de fechar portas e de fechar ainda mais a Igreja à comunidade?
É. Prefiro chamar-lhes mais tradicionalistas do que conservadores, porque buscam os tempos em que parecia que não havia problemas dentro da Igreja e em que tudo era claro. Só que hoje é preciso mais discernimento, não basta seguir a tabela, é preciso ter coração para interpretar, arriscar, para propor e avaliar. Isto é muito exigente e deixa-nos instáveis.
O que chama arriscar com discernimento dentro da Igreja?
Significa olhar com olhos bem abertos e sérios para a realidade, sem a julgar, à partida. Estar aberto à surpresa e perceber que o Espírito Santo passa por onde Ele bem sabe e não necessariamente pelos nossos canais, muitas vezes gastos. Significa dar passos conscientes na fé, ponderados. O discernimento é isto: avaliar os prós e os contras, mas não ficar a meio da ponte. É preciso correr riscos, é preciso corrigir o que há a corrigir, desenvolver o que há a desenvolver. O caminho é este, é o de ponderar, arriscar e avaliar.
Pegando na questão de avaliar, ponderar e arriscar. É um homem da bioética, cofundador do Centro de Estudos de Bioética. Nesta área o que é que a Igreja tem ainda para avaliar, ponderar, arriscar ou corrigir?
Acho que a Igreja não tem passado ao lado de nada. Agora tem tido é pouca voz exterior.
Como assim?
Neste momento, a Igreja não tem uma voz exterior. Pelo contrário, tem sido muito atacada em muitas frentes por outras frentes que têm forças de comunicação social muito fortes. A Igreja hoje não tem esse espaço.
Está a dizer que a Igreja não tem espaço para se pronunciar sobre questões da bioética? Mas a Igreja tem os seus próprios órgãos de comunicação...
A Igreja vive hoje um pouco sob uma certa suspeita de conservadorismo, o que não é verdade. Há uma espécie de anticlericalismo latente que vive de pé atrás. Por isso digo que a Igreja não tem canais de comunicação tão abertos ou de fácil acesso ao público em geral. Se quiser dizer o que penso sobre estas matérias na televisão não tenho grande espaço.
Mas têm os seus próprios meios de comunicação social...
Temos, mas são restritos, não são os meios do grande público. Não nos interessa uma atitude de campanha mas de formação personalizada. Por exemplo, as questões ligadas à ideologia de género são absolutamente instantes. Tem-se dito muito, mas quem quer ouvir? Há uma espécie de paradigma tecnocrático instalado, uma espécie de cultura generalizada de que tudo aquilo que a técnica pode fazer e a lei não proíbe se faz. Isto é o contrário do pensamento crítico, e hoje há um défice brutal de pensamento crítico, do pensar com critérios. Estamos orientados para aceitar o que vem porque a técnica permite e a lei não proíbe. E isto é explosivo. A técnica pode permitir coisas horríveis e o legal não é a moral. A moral é o bem maior que permite a compreensão do que é o humano e do que é mais humano, e supõem uma antropologia. E os critérios de hoje não têm este paradigma, tem o tecnocrático. Perdeu-se o sentido crítico.
Refere-se aos critérios que trouxeram alterações à identidade de género e às técnicas de procriação medicamente assistida?
Claro. São coisas diferentes, mas todas elas precisam de uma avaliação ética sobre o que é verdadeiro, sobre o que é mais construtivo para uma humanidade melhor. O critério ético é o que humaniza, ora muitas das propostas nestas áreas não humanizam, facilitam, permitem que a pessoa faça o que entende, que viva ao sabor da fantasia.
Como?
A ideologia de género é uma fantasia, não tem base científica. É exatamente o contrário de um ideal. É uma ideologia, e uma ideologia é um conjunto de projetos, de sonhos, que agora querem impor à realidade.
Prefere ideologia de género em vez de identidade de género?
Identidade de género existe, mas não pode ser separada do sexo. A ideia de eliminar o sexo quer dizer que rejeito a realidade, e o que conta é o que eu acho e o que penso. Isto é subjetivismo infantil. Claro que há problemas variados e, às vezes, grande dificuldade de sintonia entre a realidade sexual - que essa está lá e ninguém a tira - e o género, que é fruto de sentimentos, educação e de muitos processos psicoafetivos, mas isto não pode eliminar o sexo. Não se pode dizer que o que conta é o género e que a sexualidade é relativa, porque esta é o que fica mesmo depois de uma mudança de sexo. A sexualidade está nos cromossomas e estes não mudam. Depois de uma operação há um caso ou outro em que realmente a pessoa consegue encontrar uma certa maneira de estar, mas em alguns países onde este processo avançou há situações de crises terríveis, de se querer voltar para trás e não poder. E em Portugal, ainda por cima, está a permitir-se que essa operação se faça aos 16 anos. É um disparate, essas pessoas têm de ser ajudadas e orientadas.
Porquê?
Porque há muita confusão. A pessoa pode pensar que encontrou uma saída, mas realmente não é. Há situações sociais e políticas em que não há liberdade para tomar decisões aos 16 anos e permite-se fazer uma operação irreversível, complicadíssima e com muitas rejeições? Que maturidade existe para perceber isto tudo? Uma coisa são os casos de malformação, em que tem de se intervir. Outra são as chamadas disforias de sexo, que agora se pretende chamar disforia de género. Esta é uma coisa raríssima (as estatísticas são de quatro casos em cem mil pessoas) que causa problemas psíquicos muito sérios e as pessoas têm de ser ajudadas. Mas daqui não se pode passar para a ideia de ajudar rapidamente as pessoas que não se sentem bem, isto não se resolve avançando para uma operação que é mutilante. É assim que estou a criar uma humanidade melhor, mais consciente e mais livre? Ou estou a dar um salto mortal que a ciência não prova? Uma coisa é a técnica e o que pode fazer, mas qual é a base científica ou antropológica de que daqui vai sair um mundo melhor?
Está a dizer que esta questão leva à reflexão sobre o tipo de sociedade que queremos no futuro?
Não é reprimir, não é dizer que as pessoas não podem fazer ou que estão proibidas. É dizer às pessoas que sejam críticas e que não embarquem no facilitismo. A identidade pessoal é um processo longuíssimo que não acaba aos 16 anos. É preciso olhar para a realidade. Uma coisa são as ideias e os ideais, pego na realidade e vejo onde me leva, outra coisa são as ideologias, os projetos que se fabricam filosoficamente. Vamos passar a encaixar a realidade na ideia ou procurar que a ideia dinamize a realidade?
Onde acha que estas mudanças podem levar a sociedade?
Podem levar a grandes desconfortos, a maior sofrimento, a conflitos, a problemas de grande confusão de identidade e até a problemas complicados até do ponto de vista legal. Se se pensa que com as alterações à lei sobre a ideologia de género se vai resolver problemas, não tenho essa perspetiva. Pelo contrário, penso que tais mudanças só irão trazer maior confusão e maior sofrimento à sociedade. A história tem mostrado que estas mudanças que não vêm do fundo, de um trabalhar de maturidade, mas que surgem como uma escapatória, acabam por se virar contra nós, humanos.
Quer ser mais concreto?
Por exemplo, estamos a fazer uma coisa eticamente perigosa que é eliminar o conceito de família. Não é que estejamos agarrados à ideia de família tradicional, a família configura-se de muitos modos. Mas passar a admitir como normal que uma criança tenha (e não por necessidade) duas mães. E que não é verdade, porque tiveram de ir buscar um espermatozoide a algum lado. É uma violência. O mesmo é passar a admitir que é saudável ter dois pais sem mãe. Ainda por cima, comete-se a aberração ética de que o dador pode ser anónimo.
É contra o processo de doação anónima?
Absolutamente. Não é necessário. A legalidade deveria ser ética, mas muitas vezes não é. É de conveniência porque vai a votos. E muitas vezes uma lei passa não porque é melhor mas porque tem mais votos. Então estamos perante a sobreposição da força do número. Era absolutamente necessário que se pudesse rever estas leis, por uma questão de bom senso.
É a consequência de um sistema democrático...
É uma consequência da qual devemos ser críticos. Vamos a votos, mas admitindo que depois possa vir um partido que corrija o que não está bem. Não é por ser legal que fica bom, humano. Isto é idolatrar a lei, é o legalismo.
Está a dizer que o que se tem feito sobre a identidade de género é consequência de uma sociedade tecnocrática e pouco ética?
Exatamente. É o paradigma tecnocrático a sobrepor-se ao paradigma personalista, a técnica à frente da pessoa, a técnica permite e as pessoas jogam com isso. A técnica é um grande poder, não sou contra ela, precisa é de ser bem usada.
Na sua perspetiva, como homem ligado às letras e ao ambiente, o que é preciso fazer na sociedade de hoje?
Não é preciso fazer muita coisa. Em primeiro lugar, é preciso não destruir a família. Por muito que se queira e existam casais divididos e distorcidos, nós somos fruto do masculino e do feminino. Este desaparecimento é uma violência. Em segundo, a questão da educação, estamos a cair numa tentação muito grande de substituir a educação pelo ensino e pela instrução. E são coisas muito diferentes. Hoje os mais novos são muito instruídos mas pouco educados.
E é muito diferente...
Alguns são muito ensinados, mexem no computador como ninguém, são robôs, hackers. Mas têm espírito crítico sobre o uso que fazem destas técnicas? A educação não é ter conhecimentos, é ter consciência. E hoje temos muita ciência sem consciência.
A passagem de princípios e de valores está a ser posta de lado ou apenas descurada?
É descurada. Temos aqui outra questão que é a da aceleração do tempo. Hoje queremos que os jovens se formem rapidamente, mas a verdade é que crescem mais devagar. Quanto mais acelerado é o mundo, mais devagar se cresce. Não digo que estejamos a deitar fora os valores, porque não posso generalizar, há famílias e famílias e escolas e escolas, mas a grande tentação da pressa, da competição, do querer obter resultados, faz que se passe por cima de valores. Ao paradigma tecnocrático junta-se um outro, o economicista: que tem muito poder. Só se faz aquilo para que há dinheiro.
Está pessimista...
Não sou pessimista, mas acho que é preciso pensar, ser crítico, acredito que o futuro vai ser bom, vamos corrigir-nos, com muito sofrimento à mistura, mas vejo as novas gerações com um grande desejo de fazer coisas boas. A minha posição é a do bom uso da técnica, da exigência e do critério moral para a ecologia, para o direito, para o ambiente, para tudo.
Aos 78 anos, tem uma nova missão que é a de ter uma paróquia, a da Encarnação, em Lisboa. Como olha para este desafio?
É mais um desafio. E na minha idade aparecer mais um desafio é muito bom, achava que já não tinha idade para isto. É um desafio rico, diferente no ritmo, na maneira de estar, na colaboração com os outros.
A Igreja ainda tem um grande trabalho a fazer nas paróquias?
Cada paróquia tem uma grande missão, mas a paróquia tem de evoluir para não ficar uma paroquialite, uma coisa fechada, sem se atualizar. Há paróquias ótimas. Na Encarnação recebemos uma boa herança, há ali um bom trabalho feito pelo padre João Seabra. É uma paróquia muito especial e num território muito especial. Era a paróquia do Bairro Alto e hoje o Bairro Alto não tem nada que ver com o que era, mas as paróquias também estão abertas e as pessoas não se juntam tanto pelo sítio onde vivem mas pela sintonia que têm, pela maneira como as coisas são celebradas e ditas.
Uma última pergunta... aos 78 anos, quando olha para o futuro, o que vê?
Vejo que a morte se aproxima, mas sempre a senti próxima, não é isso que me assusta. Penso que é uma boa oportunidade para viver este tempo com paz, alegria, como uma forma de serviço. Vejo sobretudo, e é o mais importante, uma aceitação ainda maior dos limites.