Teimoso, genuíno e bom garfo. Quem é o enfermeiro em greve de fome?
Surpreendeu tudo e todos ao anunciar a greve de fome. Todos menos os que o conhecem melhor. Ulisses Rolim, antigo colega de curso na Escola Superior de Enfermagem São João de Deus (Évora) diz-se "surpreso, mas não surpreendido". Aos 51 anos, Carlos Ramalho, presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor), é descrito como "genuíno", "teimoso", "emotivo" e avesso a "injustiças". É assim que definem ao DN o homem que pela classe decidiu iniciar esta quarta-feira uma greve de fome que promete manter "o tempo necessário". O objetivo é assumido - obrigar o governo a regressar às negociações depois de o Ministério da Saúde anunciar que devem ser atribuídas faltas injustificadas aos enfermeiros que façam greve e a Procuradoria-Geral da República ter considerado o protesto ilícito.
"Está sempre presente para tudo e para todos. É um homem de causas", descreve Rolim, vice presidente do sindicato que ajudou a fundar com Carlos Ramalho. Mais que colegas, são amigos e se a luta ia subir, ainda mais, de tom, Rolim diz que só Ramalho o faria. "Se era necessário um mártir, ele está aqui, sou eu, Carlos Ramalho", anunciara o presidente do Sindepor na véspera de começar a greve de fome em frente ao Palácio de Belém, a residência oficial do Presidente da República. "As injustiças sempre o afetaram bastante. Não suporta injustiças", conta Ulisses Rolim.
Casado e pai de um rapaz, de 20 anos, Carlos Ramalho "é uma pessoa muito emotiva", de convicções fortes, conta quem o conhece melhor. A enfermeira Vanda Veiga é uma dessas pessoas. A amizade vem do tempo da faculdade, há cerca de 30 anos, e já nessa altura o colega demonstrava a sua "personalidade vincada". "É um ser humano especial, de caráter forte", diz. Ainda assim, não esperava esta atitude extrema.
"Fiquei gelada quando soube. Comecei a receber muitas chamadas de colegas a chorar. E ele é que nos dá força", conta Vanda, enfermeira do Hospital do Barreiro. Agora é a vez dos colegas e amigos estarem com ele. "Ele não vai ficar sozinho", assegura antes de prometer que estará esta noite, de quarta para quinta-feira, ao seu lado. Não é a única.
De forma espontânea, o movimento de solidariedade em torno de Carlos Ramalho já se faz sentir. Nada foi organizado. Carlos Ramalho tem apenas a roupa do corpo e uma pasta com documentos. "Nós vamos levar-lhe um saco cama e roupa quente", afirma.
Vanda Gouveia espera que Carlos Ramalho mude de ideias, apesar de admitir que a tarefa não se apresenta fácil. "É muito decidido, um homem de valores e princípios. Isto já é uma questão de honra", considera a enfermeira que vê no colega "um líder" e um homem "corajoso". "Não regateia este tipo de posição com ninguém, isto é inerente à natureza dele".
Há pouco mais de um ano que lidera um sindicato, representa pessoas que depositaram confiança nele e não vai querer defraudar as expectativas, enaltece Vanda Veiga. "Não é habitual termos gente com este tipo de iniciativa, que coloque em causa a sua vida, a vida familiar, tudo. É uma situação drástica. Vamos ter de gerir isto, vamos apoiá-lo e tentar até demovê-lo", diz.
Desde os tempos de estudante de enfermagem que Carlos Ramalho não deixava nada por dizer, "embora não encabeçasse grandes movimentos". "Tinha as suas opiniões e fazia a sua luta", recorda a colega de curso.
Uma postura que hoje mantém no terreno, na prática de cuidados de saúde no serviço de psiquiatria do Hospital do Espírito Santo, de Évora, "um homem simples, de trabalho, de valores, dedicado".
E foram as convicções fortes que o levaram a sair do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), onde foi delegado e dirigente regional. Uma saída a bem, diz Ulisses Rolim que, juntamente com Carlos Ramalho, fundou o Sindepor. "A ideia foi dele, porque não nos revíamos nas políticas sindicais que estavam a ser feitas. Portanto tinha chegado a altura de fazer qualquer coisa".
E foi o que fizeram quando convocaram a "greve cirúrgica" ao lado da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE), liderada por Lúcia Leite. A dirigente sindical conhece-o precisamente quando as duas estruturas começam a reunir, entre o "final de 2017, início de 2018". Hoje descreve-o como uma "pessoa de princípios, muito genuína".
Lúcia Leite reconhece-lhe "bondade, a combatividade". "Está de alma e coração" nesta luta, afirma. E isso transparece para a mesa de negociações. É "muito firme nas convicções, teimoso" e, às vezes, "muito inflexível num primeiro momento, mas depois acaba por cair em si".
"Não tenho dúvidas que moverá todos os esforços para atingir o seu objetivo, defender os enfermeiros", assume Lúcia Leite. Nunca pensou, porém que o colega iniciasse uma greve de fome. "Fiquei surpreendida com esta atitude. Já lhe manifestei a minha solidariedade e tomara que tenha resultados", diz, com expectativa.
A sindicalista duvida, no entanto, que este seja o caminho mais certo, mas apoia a "iniciativa individual na defesa dos enfermeiros". "É de enaltecer", elogia sobre esta posição extremada "de quem não encontra alternativa" para responder à "opressão" que a classe está a viver ao "colocar em causa a sua própria vida".
E como está a família de Carlos Ramalho a viver esta opção pela greve de fome? A apoiar, conta Vanda Gouveia. "Do que eu falei com ele, houve, inicialmente um choque, mas entendem também".
Longe das mesas de negociação, Lúcia Leite reconhece-lhe também o alentejano que gosta de desfrutar de uma boa refeição. "É um bom garfo. Acho que ele se meteu num caminho estreito, não prescinde da sua refeição e, portanto, é um alentejano genuíno nesse aspeto".
Conviver e partilhar momentos com os amigos à mesa "é um dos seus maiores prazeres", acrescenta Ulisses Rolim. "É a pior decisão que ele podia ter tomado porque é um bom garfo. É daqueles que acredita que uma boa conversa e uma boa partilha com os amigos é feita à volta da mesa, portanto isto foi uma decisão muito radical".
Uma atitude extremada de Carlos Ramalho que resulta "de um acumular de situações que foi sentindo na prática dos cuidados de saúde". "Ele está na linha da frente. Está no terreno, não é homem de gabinete", sintetiza Vanda Veiga. E, em tom de desabafo, diz: "já estamos um bocado cansados, são muitos anos de luta".
Decidiu por ele entrar em greve de fome, "não foi empurrado nem incentivado por ninguém", sublinha a enfermeira. "Tenho a expectativa que os governantes tenham percebido que alimentaram demasiado este conflito e que se calhar existiram ali situações em que não estiveram bem. Ainda vão a tempo de mudar alguma coisa."