Shakespeare adorou vinho de Bucelas e na Murta acreditam ter o melhor branco
É na peça Henrique VI que William Shakespeare fala do vinho de Bucelas, chama-lhe "charneco", como era conhecido há cinco séculos. Se adorou ou não o éter não é claro, mas gostou o suficiente para lhe ficar na memória e fazer dele bebida de eleição num drama histórico. É a prova que já este vinho andava nas bocas dos ingleses há pelo menos 425 anos.
Arinto é a casta da região e seduziu o engenheiro agrónomo Franck Bodin, que comprou há sete anos a Quinta da Murta. Colinas de videiras, em anfiteatro, com partes de uma estrada romana numa das entradas. Conta o francês que viu umas 20 propriedades, desde o Minho ao Alentejo, e foi em Bucelas que encontrou "o melhor branco". Também o aliciou a história do lugar, acabando por registar a frase do dramaturgo: "O bom vinho é um camarada bondoso e de confiança, quando tomado com sabedoria". Shakespeare e a citação são marcas da Quinta e, na hora de vindimar, sabem que este é um bom ano. Não em quantidade mas em qualidade.
Fileiras de parreiras, com grandes cachos de uva miúda branca que chegam a pesar um quilo, esta uma das características da casta arinto, dominação de origem controlada (DOC) com origem em Bucelas, concelho de Loures. "Tem uma acidez natural, ideal para prolongar a vida de um vinho. Pode beber-se logo - o que significa que o vinho das uvas cortadas este ano pode ser saboreado em maio -, mas o melhor é esperar entre cinco e dez anos", explica Franck Bodin. A casta representa 70% dos 14 hectares de vinha que comprou, o resto é tinto, touriga nacional. Completam a Quinta da Murta, a casa de Bodin, a adega e um espaço para eventos.
Franck Bodin, 52 anos, é um francês, da região de Angers (Vale do Loirs), que conheceu Portugal em 2010 numa viagem de férias. Gostou tanto que decidiu investir no nosso país e dedicar-se à atividade vinícola. "Não era a minha área, mas as vinhas sempre me apaixonaram. Até há sete anos era um gosto mais do ponto de vista científico, de estudo, agora sou produtor de vinho, estou muito contente com a minha escolha", diz. Comprou a quinta em 2012, por três milhões de euros, um ano e meio depois decidiu instalar-se em Portugal, dividindo o seu tempo entre a quinta e o Vietname, de onde é natural a mulher e onde tem uma produção de aquacultura.
"Escolhi esta quinta porque bebi aqui o melhor branco, esta é a melhor região para fazer vinho branco. Depois, gostei da parte histórica, do facto de Shakespeare já falar do vinho de Bucelas e de aqui haver uma estrada romana que ligava Lisboa a Leiria [terão sido os romanos que trouxeram o arinto]. Também está aqui a última fortificação anglo-saxónica contra as tropas de Napoleão. Tudo isso fez com que o vinho fosse conhecido internacionalmente. E claro que gostei do sítio, da localização da vinha, na encosta e a 250 m de altitude", justifica Bodin. O resultado é a produção de um vinho rico em aromas: o vinho novo é mais cítrico; ganha um sabor a maçã com o tempo, que se transforma em aroma tropical com a antiguidade.
A Quinta da Murta produz vinhos há algumas décadas e recentemente iniciou a exploração do espaço para eventos, como casamentos e batizados. Teve a sua primeira colheita engarrafada em 1994 e recebeu os primeiros rótulos numerados da DOC de Bucelas. Produz cinco tipos de vinho: branco seco, branco clássico, tinto, espumante bruto, e espumante rosé extra bruto. Os rótulos trazem a imagem de Shakespeare e de fósseis da zona. Tem cinco funcionários em permanência, nem todos a tempo inteiro.
Mário Franco, 50 anos, já trabalhava na Quinta da Murta com os anteriores proprietários. Define-se como "uma espécie de consultor", em part-time e com uma presença mais regular durante as vindimas. Vera Ferreira, 31 anos, é o braço direito de Bodin. Justifica esta filha de Bucelas: "Sempre fui agarrada à terra, mas fui estudar contabilidade. Engravidei e já não regressei ao curso. O anterior proprietário deu-me a oportunidade de trabalhar aqui, esperou que eu tivesse a criança e eu vim, há 13 anos. Apoio na parte comercial e nas vendas, além dos vinhos, temos alojamento local e eventos, como casamentos, batizados e jantares de empresas".
Durante o corte das uvas, que começou no início de setembro, recrutam uma média de 15 trabalhadores agrícolas. Trabalho sazonal, com muitos dos funcionários a marcar presença todos os anos. Como o Bruno Ferreira, 38 anos, residente no concelho e que é uma espécie de capataz. Começa as vindimas em Bucelas, a primeira é a da Quinta da Murta, depois vai para as Caves Velhas ou Quinta da Romeira, isto até ao final de setembro. Acabando este trabalho na região, desloca-se para a zona do Cartaxo, onde há cachos nas parreiras até novembro.
Em fevereiro/março recomeça as idas à vinha. A primeira tarefa é a poda. "Faço isto há muitos anos e consigo estar ocupado praticamente o ano inteiro, vou gerindo as campanhas e os trabalhos necessários para manter a vinha. Comecei a andar nas vindimas com o meu avô. É a parte de que mais gosto, gosto do convívio. Todos os anos, voltam as pessoas com quem trabalhámos na campanha anterior e há sempre caras novas", explica.
Uma cara nova é a de Maria Gonçalves, 59 anos, barbeira de profissão, de Alverca. "Nunca tinha feito isto, não é a minha área, mas estou há sete meses no desemprego. Não consigo trabalho na minha área, preferem barbeiros jovens com tatuagens e piercings, é outra onda. Vi no Facebook que precisavam de pessoal na Quinta e vim. É vindimar, é trabalho e preciso de trabalhar", conta. Apesar de ter gostado de cortar uvas, confessa que não irá ficar até ao final da campanha, vai fazer uma pausa e voltar a procurar emprego. "Vindimar é uma experiência muito rica, é sempre uma mais-valia, nem que seja para contar uma história".
O horário de trabalho na vinha é entre as 08:00 e as 17:00, com uma hora para almoçar a refeição que trazem de casa, ganham 35 a 40 euros ao dia. Os carregadores de cestos levam um pouco mais para casa.
Na campanha deste ano, esperam apanhar 60 toneladas de uvas, que são imediatamente levadas para a adega da quinta, alguns metros à frente. Dois homens descarregam os cestos para o desengaçador, máquina que separa o cacho dos bagos. De um lado, fica o engaço que, depois, é entregue ao Estado como pagamento do chamado imposto sobre o álcool etílico: do outro, os bagos, que esperam horas numa cuba para refrescar, antes de serem prensados. O mosto é armazenado em cubas de inox, onde irá fermentar. É engarrafado o vinho novo, as outras variedades, ficam em pipas de carvalho ou passam por várias fases de engarrafamento.
Franck Bodin diz que 2019 é um ano de bom vinho, não pela quantidade mas pela quantidade. A culpa pela menor quantidade é de maio, um mês muito quente e com pouca água que limitou a produção da flor, que posteriormente dá lugar aos bagos. As temperaturas dos meses seguintes foram amenas, o que é bom para a maturação, explica o engenheiro agrónomo, especificando: "As noites são frescas, na ordem dos 16 graus, o que permite um desenvolvimento mais lento da uva, além de que não temos necessidade de usar pesticidas. Em contrapartida, os dias são quentes, na ordem dos 30 graus, esta diferença de temperaturas é benéfica para todas as frutas, também para a uva. Intensifica o sabor e o aroma. Quando faz muito calor ao longo de todo o dia, o álcool sobe e não há uma maturação dos aromas. Há muito álcool, mas não é um vinho aromático". Este é o que considera ser o encanto de Bucelas.
Engarrafam 40 mil garrafas de vinho todos os anos, mas têm produção para chegar às 100 mil, assim surjam as encomendas. O vinho da Quinta apenas está disponível em restaurantes e nas garrafeiras. Isto em Portugal como nos países para onde é exportado: Canadá, EUA, França, Inglaterra e, mais recentemente, o Brasil. O melhor ano de produção foi 2015, isto numa terra em que não há queixas de maus anos.