Mais de 100 mil portugueses precisam de nutrição clínica. E muitos não sabem

Dois em cada quatro adultos internados nos hospitais portugueses estão em risco de desnutrição. A nível europeu, a média é de um para três. "É vergonhoso", lamenta o médico Aníbal Marinho. O problema está esta segunda e terça-feira em debate numa conferência internacional em Sintra
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"A nível hospitalar os doentes estão desnutridos e ninguém valoriza". O alerta é dado pelo médico Aníbal Marinho, chairman da conferência internacional da ONCA (movimento Optimal Nutritional Care for All), que se realiza esta segunda e terça-feira, 12 e 13 de novembro, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, e que vai debater a malnutrição por carência - designada também por desnutrição - que atinge números alarmantes em Portugal.

Dois em cada quatro adultos internados nos hospitais portugueses estão em risco de desnutrição quando a nível europeu o cenário é de um para três, refere o médico da unidade de cuidados intensivos do Hospital de Santo António, no Porto. "É vergonhoso", lamenta o também presidente da Associação Portuguesa de Nutrição Entérica e Parentérica (APNEP). A malnutrição por carência, que nos nos países desenvolvidos está muito associada à doença, afeta, sobretudo, os idosos. "Acima dos 65 anos é sempre uma pessoa de risco".

"Verificou-se a nível europeu que ninguém se preocupa com a desnutrição e isto está a ter proporções alarmantes. É necessário consciencializar as pessoas. Esta conferência só se preocupa com a desnutrição ou com a desnutrição por doença porque a obesidade faz parte do programa nacional, já está mais do que abordada, mais do que discutida", salienta Aníbal Marinho, chairman do evento da ONCA, um movimento que engloba 18 países europeus.

A associação APNEP estima que cerca de 115 mil portugueses precisam de nutrição clínica, em contexto ambulatório / domicílio, o que representa quase 1% da população. "E não o fazem porque não tem capacidade financeira para o fazer e porque nem sequer estão diagnosticados", explica o especialista.

"Doentes desnutridos agravam estado nutricional nos hospitais"

"A verdade é que os doentes entram nos hospitais desnutridos e agravam o seu estado nutricional nos hospitais, os que tem alta acabam por voltar precocemente porque estão desnutridos e ninguém se preocupa com isso", reforça o presidente da APNEP.

O especialista cita o estudo ANUMEDI, apresentado este ano no congresso da Sociedade Europeia de Nutrição Clínica e Metabolismo (ESPEN, na sigla inglesa), feito em 22 hospitais portugueses, nos serviços de medicina interna, e que abrangeu mais de 700 doentes, com mais de 70 anos. "[O estudo] revela que mais de 50% dos doentes internados estão em risco de desnutrição ou mesmo desnutridos", afirma o médico.

Estado (ainda) não comparticipa a nutrição artificial

Mas o que é uma pessoa desnutrida? "A causa primária da desnutrição caracteriza-se pela ingestão alimentar insuficiente, tendo como fatores associados a diminuição da ingestão (falta de apetite, dificuldades na deglutição, efeitos secundários da farmacoterapia, etc), presença de doença e tratamento associados, entre muitos outros. É multifatorial", afirma Anibal Marinho.

Como explica o presidente da APNEP, "estar desnutrido significa não ingerir alimentos suficientes durante o dia, para colmatar as necessidades nutricionais diárias", o que acontece em especial nos casos associados à doença. "Daí a forma mais comum de desnutrição ser a desnutrição associada à doença".

Um problema de saúde, que leva a "uma perda não intencional de peso, sob a forma de massa muscular", fundamental para a mobilidade e consequentemente para a autonomia do doente.

A malnutrição associada à doença agrava-se com "a dificuldade de reconhecimento de que estes doentes estão neste estado", sublinha.

E a situação não melhora quando os doentes desnutridos ou em risco de desnutrição têm alta, uma vez que Portugal é dos poucos países europeus onde o Estado não comparticipa a nutrição clínica artificial.

"É óbvio que não sendo participados, produtos que no hospital ficam por dois a quatro euros, em casa ficam ao doente diariamente entre 12 a 20 euros. É lógico que os doentes da terceira idade não têm capacidade de aguentar um custo financeiros destes. Mas, no entanto, muitas vezes, estes doentes estão a fazer tratamentos inovadores que custam milhares de euros. Não faz sentido nenhum", especifica Aníbal Marinho, que dá o exemplo do que se passa no país vizinho. "Em Espanha, desde o século passado, penso que foi em 1994 ou em 1995, que a nutrição artificial domiciliária é comparticipada há mais de 20 anos e em Portugal não é comparticipada pelo Estado", lamenta.

Aprovado rastreio nutricional nos hospitais e resolução para acesso a suplementos nutricionais

O governo começa agora a dar passos para reverter a situação. "Está a ser criada uma norma na Direção-geral da Saúde que já está sinalizada e espero que a nova ministra da Saúde [Marta Temido] acabe o trabalho que o anterior ministro e secretário de Estado estavam a fazer nesta área. Já promoveram o rastreio nutricional, que foi aprovado, a criação de uma norma para a comparticipação nutricional domiciliária, mas ainda não está aprovada", refere Aníbal Martinho.

No despacho de 6 de julho deste ano, publicado em Diário da República, são determinadas "as ferramentas a utilizar para a identificação do risco nutricional, com vista à implementação, nos estabelecimentos hospitalares do SNS, de uma estratégia de combate à desnutrição hospitalar". No documento, é referido que "a prevalência de desnutrição em doentes internados em hospitais encontra-se largamente descrita na literatura apresentando valores, dependendo dos critérios de avaliação e definição, e da população em estudo, entre os 20% e 50%".

"A desnutrição adquirida durante o internamento é, também, associada a um aumento da duração do tempo de internamento em aproximadamente mais 7 dias, comparativamente com a ausência de desnutrição quer na admissão, quer no final do internamento. Além do mais, os doentes em risco de desnutrição e cujo internamento é mais prolongado podem (...) tornarem-se desnutridos aumentando as complicações, a duração do internamento, o tempo de recuperação e os custos associados", diz o despacho sobre este "grave problema de saúde". "Trata-se de uma situação que amplifica a necessidade de cuidados de saúde e influência marcadamente a qualidade de vida dos doentes, com elevados custos a nível pessoal, para a sociedade e para o sistema de saúde".

As consequências da desnutrição em doentes internados em hospitais está também descrita neste despacho que a associa "a um aumento do risco de infeções e de outras complicações, e a uma necessidade acrescida de tratamentos hospitalares e de reinternamentos, a um aumento do tempo de internamento hospitalar, e a uma maior morbilidade e mortalidade".

Nesse sentido, seguindo as recomendações de um grupo de trabalho, e após uma proposta da Ordem dos Nutricionistas, feita em 2016, o despacho determina a obrigatoriedade da avaliação nutricional a todos os utentes admitidos no SNS para reduzir os casos de desnutrição. Um rastreio nutricional que ainda não está a ser colocado em prática, diz-nos Aníbal Marinho."Ainda estamos à espera que isso vá para a frente, Mas, pelo menos, já um despacho que obriga a essa necessidade", congratula-se.

"Não faz sentido dar terapêuticas de ponta a estes doentes e não nos preocupamos em dar-lhes o básico"

"Preocupámo-nos em diagnosticar os doentes, o que é que eles têm, e esquecemo-nos imenso de nos preocupar em vermos como é que eles estão a comer, se o estão a fazer de uma forma adequada ou não", constata. "Não faz sentido nenhum estarmos preocupados em dar terapêuticas de ponta a estes doentes e não nos preocupamos em dar-lhes o básico", reforça o médico.

Até porque os problemas associados à desnutrição dos doentes nos hospitais acaba por se tornar num ciclo vicioso​​​​​​, uma vez que aumentam as complicações, infeções, o tempo de recuperação, os prolongamentos de internamento, o reinternamento. Tudo isto somam-se os custos para o sistema de saúde.

A APNEP estima que a desnutrição custe ao SNS 255 milhões de euros. "Gastamos uma excessiva carga monetária e depois não rentabilizamos o dinheiro que estamos a gastar com estes doentes, porque depois não vão ter benefícios nenhuns, conseguimos fazer diagnósticos e tratamentos brilhantes, mas, no fim, temos o doente desnutrido, com incapacidade de andar e que depois acaba por falecer, porque vai aumentar a morbilidade e vai ter muito mais infeções e andar sempre internado em hospitais. Isso não nos resolve o problema", sublinha o médico.

Para mudar a atual situação é, por isso, necessária a intervenção do Estado a nível transversal, defende. É fundamental, diz, que haja mais nutricionistas nos hospitais, bem como "formação pré-graduada nos profissionais de saúde, nomeadamente médicos e enfermeiros, que são os que estão mais em contacto com os doentes". "Depois se temos formação nesta área, fazemos intervenção ao nível hospitalar, e queremos dar alta precocemente aos nossos doentes é óbvio que devíamos continuar com a intervenção nutricional ao domicílio comparticipada pelo Estado", enfatiza.

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