Ala pediátrica por construir, demissões. O que se passa no Hospital de São João?
Têm sido anos de polémicas e impasses, com sucessivas denúncias das situações problemáticas que se vivem no Centro Hospitalar e Universitário de São João (CHSJ), no Porto. Uma das mais gritantes é a da ala pediátrica, que desde 2011 funciona em contentores - idealizados para serem provisórios -, à espera da construção de um novo edifício. Agora, a promessa é de que a obra avance no segundo semestre deste ano, o que deverá acontecer com uma nova administração. Cerca de uma semana após o fim do mandato, que terminou a 31 de dezembro, o conselho de administração apresentou, esta quarta-feira, o pedido de renúncia de funções.
A justificação apresentada para o pedido de renúncia é, segundo o conselho de administração, apenas uma: "Facilitar a sua substituição da forma mais rápida possível". Numa nota enviada à imprensa, a instituição afirma que "foram estes os únicos fundamentos que estiveram na base do pedido". Mas há quem defenda que existem outros motivos, relacionados com a situação que se vive no CHSJ.
É o caso de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos e urologista naquele hospital, para quem o pedido de renúncia demonstra "algum grau de insatisfação". "Não é um pedido de demissão. Quer dizer que ele [o conselho de administração] vai embora, quer queiram quer não. Neste caso, quer dizer que, até ao fim de fevereiro, está fora do hospital, e o ministério da Saúde tem de o substituir", disse ao DN.
Para o bastonário, a decisão do conselho de administração está relacionada com a situação em que se encontra o CHSJ. "Dirigir um hospital como o de São João - que é um grande hospital - é um grande desafio em termos de responsabilidade, em termos éticos e do que é a missão de serviço publico. Quando a pessoa acha que não consegue cumprir a missão porque não tem as condições para o fazer, isto causa alguma frustração", afirma. Em causa, prossegue, está o facto de os hospitais não terem "orçamentos adequados às suas necessidades". "Continuamos a valorizar a saúde dos portugueses de uma forma miserável, com 5.2% do PIB", lamenta.
Entre os principais problemas, Miguel Guimarães destaca "a incapacidade para contratar os profissionais de Saúde que são necessários, para renovar os equipamentos, para fazer obras para colocar as pessoas em condições de dignidade e para oferecer boas condições de trabalho aos profissionais". Lembra, por exemplo, "as crianças que continuam em contentores no meio do jardim" do hospital.
Relativamente a esta questão, o bastonário da Ordem dos Médicos recorda que "o conselho de administração envolveu-se ativamente para tentar resolver o problema das crianças", que se encontram em "condições indignas", tal como os colegas de saúde que lá estão. "Assumiram frontalmente a situação e, passados seis ou sete meses, o melhor que se consegue é dizer que se calhar daqui a alguns meses vai haver obras".
Nos últimos meses, foram muitas as denúncias feitas por pais e médicos sobre as más condições dos contentores onde a ala pediátrica funciona há mais de oito anos. Queixam-se de infiltrações, falta de camas de isolamento, avarias no sistema de aquecimento, falta de acesso direto ao edifício principal do hospital. Houve, inclusive, relatos de crianças a fazer quimioterapia em corredores.
Em abril, o presidente do conselho de administração, António Oliveira e Silva, admitiu que as condições do atendimento pediátrico são "indignas" e "miseráveis", e lamentou que a verba para a construção da nova unidade ainda não tivesse sido desbloqueada. Esse problema parece já estar resolvido, mas é preciso recuar até 2008 para perceber por que razão o impasse se mantém.
Desde esse ano que a nova ala pediátrica do CHSJ está prometida. Perante as fracas condições em que se encontrava o serviço de pediatria, a administração resolveu recorrer a mecenas que financiassem a obra, promovendo diversas iniciativas para angariar fundos. Três anos depois, as crianças foram transferidas para os contentores - onde se mantêm as instalações provisórias -, mas ainda estavam longe de chegar aos 25 milhões de euros necessários para a obra.
Em 2014, a administração, então liderada por António Ferreira, convidou o economista Pedro Arroja para presidir a Associação Humanitária "Um Lugar para o Joãozinho" e concretizar a obra, um edifício constituído por cinco pisos, que ocuparia 10 mil metros quadrados. Em março de 2015, foi lançada a primeira pedra, com a presença do então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. Sucederam-se diversos desentendimentos e dúvidas sobre o financiamento e orientação do projeto, que levaram a obra a parar, em março de 2016.
Ao DN, Pedro Arroja conta que "quando este governo entrou em funções, paralisou a obra que estava a decorrer, não desocupando a unidade de sangue" do hospital, que se encontra no perímetro da construção. "A obra teve uma duração efetiva de meses. Desde então, pedi que cumprissem o que tinham assinado, mas nunca o fizeram", critica o economista. Segundo o mesmo, "a obra não está parada por falta de dinheiro, mas porque o serviço de sangue não saiu de lá", pelo que "esta administração e este Governo são responsáveis por manter as crianças na situação miserável e indigna em que se encontram nos últimos anos".
Entretanto, o Governo decidiu avançar com o projeto, que passa a ter investimento público. Depois de um impasse no desbloqueio das verbas para a obra, o parlamento aprovou por unanimidade a proposta de alteração do PS que prevê a possibilidade de recurso ao ajuste direto para a construção do Centro Pediátrico daquele hospital. Segundo a administração que agora renunciou, a obra deverá começar no segundo semestre deste ano, prevendo-se para abril a transferência provisória da pediatria oncológica, atualmente em contentores, para o edifício central. Uma informação que também foi confirmada em dezembro pela ministra da Saúde, Marta Temido, que afirmou que a obra deverá começar em 2019 e prolongar-se por um período de 24 meses.
Mas mantém-se o braço de ferro entre a administração e a associação "Um lugar para o Joãozinho". Pedro Arroja acredita, inclusive, que a carta que enviou ao conselho de administração, no dia 3 de janeiro, estará na origem do pedido de renúncia. Nesse documento, o presidente da associação, que tem a titularidade da obra, sugere que o hospital "desimpeça" o espaço destinado à ala pediátrica, retirando de lá o serviço de Sangue, para que possa avançar com a obra. "O que propusemos ao hospital é que, como governo disse que vai avançar com a obra até ao final ano, tire dali o serviço de sangue, nós continuamos já com os trabalhos - pagos com dinheiro de mecenas que temos em caixa - e quando o governo estiver em condições de assumir a obra, cedemos a titularidade e o governo faz o resto", explica o economista.
Em resposta, o presidente do conselho de administração, António Oliveira e Silva, alertou a Associação Joãozinho da "obrigação" da devolver o terreno da ala pediátrica até março, segundo o protocolo de 2017, cuja vigência já esgotou. Segundo a administração, não é possível cumprir as condições impostas pela associação.
Mas Pedro Arroja não está disposto a devolver o terreno ao CHSJ. Alega que a cedência foi, efetivamente, feita por três anos, mas que a obra foi boicotada. "Devolver o terreno? Não pode ser, porque há contratos firmados. A associação Joãozinho tem um contrato com um consórcio construtor de 20 milhões de euros. Esse contrato tem de ser minimamente honrado, não pode ser rasgado porque o Governo decidiu fazer a obra".
No final de 2018, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) contabilizava cerca de 130 demissões na saúde, entre diretores de serviço e de urgência. Para o presidente da estrutura, Jorge Roque da Cunha, são um sinal de alerta: "A situação de desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a incapacidade que o Governo tem tido de, por um lado, fixar profissionais e, por outro, atrair, faz com que haja necessidade de um grito de alerta".
Ao DN, o representante manifestou "solidariedade" com os colegas do CHSJ, bem como "com os dirigentes do Hospital de Lisboa Central, Viseu, Faro, Guarda, Gaia". "É um grito de alerta, mas, infelizmente, o Governo, sabendo que os médicos até serem substituídos permanecem a cumprir as suas funções, não lhe tem dado a atenção devida. A situação nos hospitais do SNS é altamente preocupante. É uma calamidade o que se está a perspetivar", alerta.
Para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, ver "centenas de médicos a apresentarem a sua demissão é um péssimo sinal". "Temos pessoas à frente dos hospitais que têm de lutar por condições de dignidade para doentes, utentes e profissionais, quando quem devia fazê-lo era o Ministério da Saúde. Estamos a desprezar a saúde dos portugueses".
O DN tentou obter uma reação junto do conselho de administração do CHSJ e do Ministério da Saúde, mas ainda não recebeu resposta.