Daniel Cardoso: "Não usei o exemplo do beijinho ao avô e avó por acaso"
Daniel Cardoso é doutorado em ciências da comunicação e professor universitário, para além de conhecido ativista da diversidade sexual e de género. Entre artigos e capítulos de livros, tem mais de 30 publicações científicas, muitas relacionadas com a sexualidade. Recentemente publicou um artigo científico sobre o papel social da criança e outro sobre ativismo online.
Na segunda-feira, no programa Pós e Contras emitido na RTP1 que se dedicou a discutir o #Metoo, emitiu uma opinião que foi considerada polémica por muitos espectadores. Daí a discussão passou para as redes sociais, com o habitual discurso de ódio e uma grande incitação à violência - e o caso tornou-se exemplar da forma como hoje o espaço público está degradado.
A frase em questão, na discussão sobre o consentimento sexual, foi esta: "É preciso falar de educação de forma concreta. A educação é quando a avozinha ou o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho. Isto é educação, estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro e da outra desde crianças. Obrigar alguém a ter um gesto físico de intimidade com outra pessoa como obrigação coerciva é uma pequena pedagogia que depois cresce."
A ideia que defendeu criou uma enorme polémica, mas é consensual nos meios científicos e até defendida por instituições tão conservadoras como, por exemplo, os escuteiros norte-americanos. A que se deve esta dimensão deste escândalo?
Eu diria que a opinião que defendi é ainda mais comum. Qualquer pessoa que vá comprar um livro sobre parentalidade positiva a uma grande superfície vai encontrar indicações sobre não impor as coisas às crianças. Isto está já ao nível do senso comum, nos manuais de como ser um bom pai ou uma boa mãe. Porque é que isto chegou aqui? Porque eu usei o exemplo do avô e da avó, e não o fiz por acaso. Usei aquelas figuras a quem no nosso imaginário atribuímos (pelo respeito, pela idade) uma série de poderes e direitos. É uma tradição muito arreigada, de tal forma que já perdi a conta às vezes que vi uma mãe dizer "se não dás um beijinho à avó vais ver o que te acontece" ou "dá um beijinho ao avô e ganhas o brinquedo". É contra este tipo de fenómeno que eu estou a falar e isto perturba as pessoas, porque mexe com a sensação de pureza e da naturalidade das relações familiares.
Porque é que isso continua a ser entendido como uma questão de boa educação?
Ainda há uns meses publiquei um artigo científico no Brasil sobre o significado da criança na nossa cultura. E a criança, regra geral, não é vista como um sujeito com direitos e deveres, mas sim como um objeto a ser administrado por interesses superiores. A criança permite às pessoas exercer aquilo a que se chama a tirania dos pequenos poderes. Porque a criança precisa de proteção acrescida e de competências que ainda não adquiriu, há a utilização desse dever parental para a imposição de obrigações que vão muito para além do cumprimento desses direitos e desses deveres.
Em momento nenhum me passou pela cabeça sugerir a falta de educação. Mas há a questão do respeito: o respeito deve ser uma condição mínima fundamental das interações humanas. Se ensinarmos às crianças que não se respeita um não e - atenção a isto - que pela utilização da violência ou da coerção ultrapassamos este não, estamos a dar um exemplo. E é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro.
Portanto, o que está em discussão é o poder?
Claro, o que está em discussão é a parentalidade vista como um último reduto de relações verticais de poder naturalizadas. Que é uma coisa que é questionada na pedagogia e nas ciências da educação há décadas.
No programa fez uma acusação bastante grave contra o sistema judicial, assumindo que há um movimento deliberado de desvalorização dos processos de violação.
Sim, e a razão principal foi a que enunciei: fazer a prova material de uma violação é particularmente difícil e são usados os mais variados argumentos para "plausivelmente" levantar dúvidas. Por outro lado, temos em Portugal uma justiça lenta; já chegam poucos casos a tribunal, e alguns dos que chegam resultam em acórdãos chocantes para a vítima.
Eu diria que isto não é pontual, é sistemático. E as pessoas, impossibilitadas de recorrer ao sistema judicial, exprimem-se de outras maneiras. E eis como surge o #MeToo. Não digo que o #Metoo seja apenas o produto de um mau sistema judicial, digo é que num mundo com um sistema judicial célere e justo, seria menos provável que o #Metoo tivesse esta dimensão.
Grande parte dos argumentos escutados nestas discussões, e também de algumas decisões judiciais recentes, baseiam-se na desvalorização do consentimento. Porque é que isso acontece?
Porque não temos, de forma geral, uma literacia sobre o que é o consentimento e não temos um entendimento nem práticas arreigadas sobre como dar e procurar consentimento.
Quem deveria fazer isso? A escola?
A escola e o sistema educativo podem e devem fazer isso, mas tudo isto tem de começar na família. Mas se os pais não têm esta sensibilização então não vão transmitir estes princípios aos filhos. A solução seguinte será que, com muito trabalho em ações de sensibilização e na escola, este tipo de coisas comece a ser democratizado.
Mas há aqui um problema. As pessoas tratam o consentimento sexual como algo diferenciado de tudo o resto e isso está errado. O consentimento não é um ato, é um processo e uma dinâmica que é transversal a todas as interações interpessoais na nossa vida. Não há uma consciência clara disto. Como no sexo a questão é mais evidente, fala-se nisso. Mas o consentimento precisa de ser visto como uma "soft-skill" que tenho de usar em toda a minha vida. Nós precisamos de uma educação sobre o consentimento muito mais alargada.
Não é um problema que as respostas a movimentos como o #Metoo levem a um reforço da resposta política que reforça o conservadorismo? Não seria preferível um movimento menos acutilante que levasse a melhores respostas?
Tenho sempre muitos problemas em colocar a responsabilidade nos movimentos contraculturais, porque não há nada no movimento contracultural que obrigue a cultura vigente a ser tão agressiva. A resposta da cultura vigente não depende nem pode depender da culpabilização dos movimentos sociais.
Durante a discussão desvalorizou as redes sociais dizendo que elas são apenas o reflexo da sociedade. Mas há uma impunidade dada pelo teclado que efetivamente baixa o nível da discussão pública, certo?
Eu às vezes ligo a ARTV e ouço discursos com palavras mais caras, com um discurso mais rico e com palavras com mais sílabas, mas em que o nível não é assim tão mais elevado do que o das redes sociais.
Essa comparação não é um exagero e até abusiva? Vi agora discussões em que você foi insultado, a sua família foi atacada e até chegaram a sugerir a sua morte.
Mas quantas vezes vemos no Parlamento chalaças e trocadilhos que visam deitar abaixo o outro? É outro nível de respeitabilidade mas não é necessariamente mais elevado do que nas redes sociais.
Mas essa não é a palavra-chave? Não é esse grau de respeitabilidade que está ausente das redes sociais?
É verdade, sem dúvida que nas discussões nas redes sociais é muito fácil descer ao ódio e ao discurso desumanizante. Estive para dizer isto no programa, não disse, digo agora: esta questão da discussão nas redes sociais remete para a Hannah Arendt e a Banalidade do Mal (N.R.: livro que reflete sobre a forma como a população alemã aceitou e aderiu ao discurso e ao sistema de ódio propagado pelo nazismo). E naquela altura não havia redes sociais!
Sou completamente contra estas visões tecnodeterministas que vêem na tecnologia a responsabilidade ou a solução seja do que for. Nós temos dinâmicas sociais que importamos para a tecnologia, que são moduladas por ela, mas não nascem com ela. A banalidade do mal não está nas redes sociais, está nas pessoas.
Mas há um interesse direto destas empresas tecnológicas na criação de emoções, porque há um ganho financeiro relevante na mobilização das pessoas e no engajamento em discussões.
Devo lembrar que há empresas hoje respeitáveis que lucraram muito com a banalidade do nazismo, portanto as coisas não são assim tão diferentes.
Um aspeto interessante do discurso de ódio contra si é que são usados os próprios estereótipos que você critica. Muitos ataques referiam o aspeto físico, o ativismo sexual, a carreira profissional.
Bom, há coisas que obviamente me impactam e afetam, como a quantidade de vezes que as pessoas sugeriram que fosse violado ou assassinado ou que me suicidasse. Agora, pessoas que me chamam gay, ou efeminado, ou criticam o meu aspeto, precisam de entender melhor como é que funciona a dinâmica do insulto. Porque se a dinâmica do insulto pretende que o outro se sinta inferiorizado, e eu uso para o inferiorizar as formas que essa pessoa tem para se empoderar, então é um bocado inútil - é como querer matar alguém à fome dando-lhe um belo repasto.
Mas mais uma vez remeto para a banalidade do mal. Não estamos a falar de pessoas que dedicam a sua vida a maquinar a destruição do outro, são pessoas que agem e reagem de acordo com a sua educação e com as suas tendências e fazem aquilo que acham bem. Eu acredito que muitas destas pessoas acreditam naquilo que dizem, que acham que estão a defender valores importantes para a sociedade, ainda que para isso tenham de recorrer a essa banalidade do mal. Aqui a questão está no respeito à existência da outra pessoa, no reconhecimento político ao direito da outra pessoa a existir.
Que é uma coisa que não existe nestes movimentos de ódio nas redes sociais.
Exatamente, o que interessa é erradicar o outro que pensa de maneira diferente. Não há política sem reconhecimento. Mandar alguém matar-se é o cúmulo do não-reconhecimento.
Você não é propriamente virgem nesta questão da exposição pública nem na defesa de ideias que fogem de alguma forma à norma. O que é que aconteceu desta vez para que os ataques tenham ganho esta dimensão?
Uma parte de mim não sabe, porque eu já disse coisas potencialmente bem mais chocantes... Mas volto à minha primeira resposta: isto mexe com valores muito centrais para as pessoas, que são os valores do respeito pelos mais velhos e pela família tradicional - que, se as pessoas pararem para ouvir, percebem que são valores que eu nem sequer ataquei. Não ataquei nem o papel da família tradicional nem a importância da boa educação.
Dito isso, há uma coisa no meio disto tudo que me surpreende. Eu estava numa conversa com pessoas informadas e essas pessoas não sabem que mais de metade dos abusos sexuais de crianças dão-se com familiares ou com pessoas próximas da família. Por isso, quando criamos espaços em que não há regras, estamos a criar espaço para os abusos. Já não sei a quantidade de pessoas que vieram ter comigo desde o programa a contar que foram obrigadas a dar o beijinho à pessoa que antes ou depois a molestou sexualmente.
Alguns meios de comunicação usaram-no para criar conteúdos com informação descontextualizada. Imagino que, como professor de comunicação, isso inspire alguma reflexão sobre o estado do jornalismo.
Bom, se isto não é a definição de mau jornalismo de cópia, não sei o que é, até porque erraram em coisas básicas como a minha idade. Em segundo lugar, eu não fui contactado por nenhum órgão de comunicação antes da publicação daquelas peças, só um deles me contactou depois para fazer outra peça.
Diria que a guerra dos cliques se junta à guerra da velocidade e ao jornalismo fácil e irresponsável que não cumpre seque os requisitos mínimos. É uma violação básica da deontologia jornalística - o que é especialmente interessante tendo em conta que neste semestre leciono direito da comunicação.