Bárbara, Marta e João sabem que têm direitos, mas o mais importante é o "ser feliz"
Na casa que agora também é deles, mas que tratam por "lar", Bárbara, Marta e João constroem histórias, tecem planos, expressam desejos e reclamam atenções. Não têm laços de parentesco a uni-los.
Conheceram-se ali, na instituição da Misericórdia de Lisboa, quando em determinado momento das suas vidas houve algo que fez que o seu destino fosse o mesmo, o de viverem separados da família em que nasceram e tivessem de ficar à guarda do Estado.
Por isso, os nomes são fictícios, as caras não são mostradas, apesar de eles, na sua inocência, não perceberem e questionarem: "Porquê? Eu até gostava", dizem a rir. Bárbara, Marta e João são crianças de 10 e 9 anos. Vivem no centro de Lisboa, numa casa onde a morada não importa, e o "lar", como dizem, deixou de ter nome, para que tudo atenue as marcas das histórias de que já são protagonistas.
Mas são crianças como as outras e "as crianças são crianças", afirma João perentório quando se lhes pergunta se sabem o que são direitos, que direitos mais gostavam de ver cumpridos, o que desejam para agora, para este momento, e para os outros que ainda fazem parte do futuro, mas que gostassem de antever. E as respostas não se fizeram esperar, ao jeito de cada um, ora mais irriquieto, mais tímido, com mais energia e até com mais maturidade.
Na casa que agora é deles, e para onde se mudaram a 1 de abril deste ano, deixando para trás a anterior, que ficou desgastada pelo tempo, os três foram crianças sem barreiras, apenas com a recomendação de que conhecem as regras da casa e de que só têm de as cumprir. "O que têm de fazer quando quiserem falar?", pergunta-lhes a diretora da casa, Michele, a quem beijam e agarram assim que a veem. "Não podem falar todos ao mesmo tempo senão a Ana não percebe o que dizem", reforça. "Eu levanto o braço", diz João. Bárbara diz que faz um sinal redondo e Marta ri-se, confessando que não sabe se tem muito para dizer. "Vocês sabem do que vamos falar, só têm de dizer o que pensam", remata.
Na sala onde fazem as atividades depois da escola, onde conversam com as educadoras, onde fazem jogos e onde, mais importante do que tudo, estão as regras que têm de respeitar, Bárbara, Marta e João disseram de sua justiça, mas só depois de lhes explicarmos porque pedimos para visitar a casa deles e porque quisemos saber o que pensam.
Pois bem, sabem que hoje se comemora o Dia dos Direitos das Crianças? "Tenho um livro da escola que fala disso, já falámos nas aulas", dispara logo Bárbara. Sabem que há 30 anos países de todo o mundo assinaram uma carta onde estão 31 direitos das crianças? "Regras?", pergunta João. "Não, direitos", dizemos.
Por isso, quisemos saber o que pensam sobre "os vossos direitos, aqueles que acham que têm, os que são mais importantes para vocês", continuámos, mas nem nos deixam acabar. Nesta altura, já o dedo de João está no ar e Bárbara já está a responder. "Para mim há um direito muito importante. É o de nós termos direito à privacidade. O termos direito a dizer às pessoas que não podem entrar no nosso quarto quando não queremos". João atira logo também: "Isso não é o direito à privacidade, é o direito à intimidade", diz, seguro, e do seu tamanho pequeno, olhos redondos, expressivos, atrás dos óculos que endireita tantas vezes.
No meio dos dois no sofá da casa, Marta olha de um lado para o outro. Ri-se ao ouvi-los e diz que ela gostaria de ter "o direito de ir ao Mac com a Tânia" - a psicóloga de 28 anos que há dois anos e meio trabalha com educadora na Santa Casa, e por quem eles disputam a atenção. Ela, ri-se, mas firme vai colocando-os na ordem, admitindo que nem sempre é fácil gerir tanta energia e suscetibilidade.
"Mas o que se passa contigo hoje?", atira Bárbara a Marta. "Isso não é um direito é um desejo." "Não sei o que são direitos", continua Marta, mas sabe que aquilo que mais queria que fosse respeitado na sua vida "era ter uma família diferente e não igual a outras", afirma sentada no chão, depois de ter feito o pino, de mostrar os deus dotes em ginástica.
Aos 10 anos, Marta tem seguramente quase um 1,60 m, é das mais altas na casa, cresceu muito nos últimos meses, quer ser ginasta e cantora de ópera, e demonstra porque o quer ser. Do corpo de menina, faz ecoar uma voz e um timbre que surpreendem e que se guardam. Não anda a aprender canto, apenas "canto porque gosto e quando me apetece".
A amiga Bárbara incentiva-a a participar na conversa. É com ela que Marta partilha o quarto ao lado, cheio de bonecos e de fotografias em atividades. À entrada, o espelho quase do tamanho das duas serve de terapia, para perceberem que não têm de ter medo, receio ou vergonha de se olharem.
Porque naquela casa, um prédio de quatro pisos, todo recuperado, numa zona nobre de Lisboa, e da qual eles próprios dizem que parece "um hotel comparada com a outra", Bárbara, Marta e João aprendem a construir direitos, a respeitar regras e que estas não são só para eles, são para todos, até para os adultos, dentro e fora da casa.
João, o mais pequeno, não tem papas na língua, sabe que tem direitos, até o de poder brincar, e de descansar, mas diz: "Para mim, um dos direitos mais importantes é a liberdade." As outras riem-se, mas ele explica: "Liberdade para respirar fundo, para podermos fazer o que queremos, menos bater nos outros", confessa, escondendo a cara. E reforça: "Sim, liberdade, porque é da liberdade que vem a responsabilidade", responde-lhes.
Bárbara, mais destemida, explica-lhe: "Isso é um dever, olha ali para o quadro", diz-lhe. E os dois começam a ler as regras expostas na parede da sala. A primeira, e uma das mais importantes e das mais difíceis de cumprir no dia a dia, assumem, é a de "não serem permitidas agressões físicas, verbais, psicológicas ou linguagem desadequada".
"Tu chamas-me nomes", diz João a Bárbara. "Eu só digo às vezes estúpida ou estúpido, não digo burra", confessa. João assume que às vezes o irritam e que dele se solta alguma agressão aos colegas. Mas vai melhorar. Ele próprio diz que o quer fazer, porque, quando for grande, "quero ser militar. O meu pai foi e falava disso, ia para missões, eu também quero isso", explica.
Bárbara, que em mais pequena até pensou ser piloto de aviões, porque o que mais gosta é de viajar, escreve palavras em cima da mesa com o jogo de letras, direitos, amizade, amor, diz que já tinha ouvido falar da carta dos direitos da ONU, na escola e num livro que tem, mas, para ela, o direito que mais queria ver cumprido era o de "a minha irmã conseguir arranjar uma casa para morarmos as duas".
João, no sofá, irriquieto, chama a atenção da educadora, diz-lhe que um direito que gostava de ter era o de poder estar sempre em casa da Inês, uma família voluntária, uma jovem que o vai buscar aos fins de semana, que está com ele, que assiste às suas festas e que o deixa feliz. "Gostava de estar mais vezes com ela, mas não sei como vai ser quando ela começar a trabalhar." Na conversa connosco explica que é um 'bocadinho' uma preocupação, a educadora diz-lhe: "Estás com saudades dela? Então, hoje, vamos ligar-lhe."
Estamos quase na hora de terminar a conversa. Eles têm outros afazeres, foram os primeiros a chegar a casa. Os outros, mais quatro meninas, uma de 6 anos, duas de 8 e outra 13, e três rapazes, de 11, 12 e 17 anos, estão nas suas atividades diárias, que não perdem por nada. Elas na ginástica e no yoga, eles no futebol.
Bárbara está de saída: "Vou para a arteterapia", diz satisfeita. Três crianças, muitos desejos, os mesmos direitos e as mesmas regras para cumprir. Como eles há muitos mais. De acordo com os últimos dados oficiais, em 2017 havia 7553 crianças e jovens à guarda do Estado, quantos estavam em 2018 ou até já em 2019, não se sabe. O relatório CASA de 2018 ainda está por publicar.
Uma coisa é certa, defende quem trabalha com estas crianças, ao fim de 30 anos ainda há muito fazer. Para as crianças, o mais importante, "é ser feliz. Isso é o que eu quero", remata João, porque "nós as crianças somos crianças. É só isto", acrescenta. E está tudo dito.