Maria do Céu Machado: "Para ser chefe, a mulher tem de se portar como uma mulher"

Passados cinco anos da última aula do seu marido - o médico João Lobo Antunes, que morreu em 2016 -, a pediatra, professora universitária e presidente da Autoridade do Medicamento (Infarmed) Maria do Céu Machado deu a sua última aula. Falou sobre a sua vida, carreira e sobre o seu contributo para o sistema de saúde português.
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"O que precisamos de fazer é estudar e planear", afirmou Maria do Céu Machado, 69 anos, durante a sua última aula na Faculdade de Medicina na Universidade de Lisboa, esta terça-feira. Depois de 48 anos ao serviço da saúde em Portugal como médica, diretora de serviços hospitalares, presidente do Infarmed, Alta Comissária para a Saúde e nas muitas outras funções que acumulou na área, a pediatra reafirmou que a educação é o mais importante e que é necessário estudar as políticas de saúde.

O mote para a aula - "Mais de quatro décadas na Saúde: um exercício de trigonometria" - foi-lhe sugerido pelos netos, Diogo e Teresa, à mesa durante um almoço. Maria do Céu Machado tinha em mente uma referência aos anos de carreira, recem descobertos numa carta sobre a sua reforma, mas os netos aconselharam: "o melhor é usares a trigonometria". A ideia das relações entre o comprimento de dois lados de um triângulo para os diferentes valores de um ângulo agudo interessou-lhe. A sua carreira médica também foi assim, feita da procura do ângulo certo em cada desafio.

Passou pelo Hospital Santo António dos Capuchos, pelo Curry Cabral, pela maternidade Alfredo da Costa, inaugurou o serviço de pediatria no Hospital Amadora-Sintra, pelo Santa Maria. Depois "o ministro Correia de Campos foi-me buscar para Alta Comissária da Saúde. Sofri muito, porque eu era uma pediatra feliz". Mas aceitou o desafio, este e os que se seguiram na área das políticas da saúde - das quais apesar de tudo mantém uma certa distância no seu discurso muito marcado pelo tom pessoal.

Educar para a mudança

Perante médicos, familiares, pacientes, alunos e personalidades públicas como os antigos Presidentes da República Cavaco Silva e Jorge Sampaio, o general António Ramalho Eanes e a ministra da Saúde, Marta Temido, num auditório sem lugares disponíveis, nem nas escadas, a pediatra insistiu que a chave para a maioria dos problemas da saúde passa pela educação. "Temos de aproveitar todas as oportunidades para educar para a saúde".

E no que ao ensino da medicina diz respeito, referiu que é importante passar a mensagem de forma diferente. Num inquérito que realizou no ano passado a estudantes de medicina, 87% dos alunos diziam que a matéria era "difícil e inútil". "Nós temos de pensar mais nos nossos jovens. Às vezes estudo com eles e vejo que realmente a matéria é muito aborrecida e que não serve para nada. Estamos a exigir muita pressão, médias, mas depois de estudarem não têm emprego diferenciado. Não chega fazer planos na saúde. Temos de planear a saúde, a educação e o emprego", defendeu.

Para a pediatra, estes temas estruturantes têm de ser alvo de uma análise ponderada, que não seja feita apenas em momentos de crise. "Quando estamos sob pressão não tomamos as melhores decisões, por isso importa estudar as hipóteses antes e planear".

"Eu nunca quis seguir nenhuma carreira que não fosse medicina"

Maria do Céu Machado falou ainda da vida. Da sua (que se confunde com a carreira) e da dos outros. A aula foi um misto de memórias, episódios e de preocupações sobre a qualidade da saúde das crianças e dos adolescentes portugueses. A primeira recordação estava logo no local e na data. Foi aqui, neste auditório, há cinco anos que o seu marido, o médico João Lobo Antunes (1944-2016) deu também a sua última aula por ocasião do seu 70.º aniversário.

Falou ainda do impacto dos avós na sua vida, principalmente do avô Manuel, pneumologista, que visitava a família todos os dias e falava muito do curso de medicina. Aguçou a curiosidade da neta. "Eu nunca quis seguir nenhuma carreira que não fosse medicina". E assim foi; mesmo que os pais não tenham estado de acordo com a sua decisão por não considerarem uma profissão inadequada para uma mulher. Em 1966 entrou para a faculdade de medicina depois de ter estudado no liceu Dona Filipa de Lencastre, Lisboa, e no colégio Sagrado Coração de Maria de onde saiu "aos 16 anos por fazer o contrário do que as freias diziam".

Mas sobre a adequabilidade da profissão que escolheu para si, mulher, tem algo mais a dizer, momentos antes de deixar o palco do auditório. "Quando estava em Cambridge passei por esta frase, que na altura fotografei: Para ser chefe, a mulher tem de se portar como um homem, trabalhar com um cavalo, portar-se como uma senhora e parecer uma adolescente". Segundos depois projeta a sua adaptação da mesma frase: "Para ser chefe, a mulher tem de se portar como uma mulher, trabalhar com um cavalo, portar-se como uma senhora e parecer uma adolescente".

"Obrigada, professora"

Para a presidente da associação de estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Andreia Daniel, a professora Maria do Céu "é um exemplo de um ser humano especial, dedicado aos outros, aos doentes, aos alunos, ao país". Inspirou os estudantes não apenas com os seus conhecimentos como também com a sua "genuidade, sinceridade". "Apoiou os nossos projetos, os nossos sonhos".

Já a colega Ana Isabel Lopes do departamento de pediatria do Hospital de Santa Maria destaca a "figura pública de grande relevo", que "tem sido uma médica do seu tempo e à frente do seu tempo. Lúcida e intuitiva, criou mudança por onde passou"."A herança que nos deixa é pesada", diz Ana Isabel Lopes.

"Obrigada, professora", repetiu quatro vezes seguidas Andreia Daniel em nome de todos os alunos da faculdade, como fez questão de lembrar.

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