A revolução dos enfermeiros em marcha: "Os cravos eram vermelhos, hoje são brancos"

Os enfermeiros saíram à rua pela valorização e dignificação da profissão. Uma Marcha Branca pela Enfermagem que reuniu milhares em Lisboa, mostrou a união da classe, teve o apoio dos sindicatos e do presidente da Aliança, Santana Lopes. "É tempo de se chegar a acordo", afirmou.

"Vamos lá acordar, enfermagem". O mote estava dado para o início da Marcha Branca pela Enfermagem, que esta sexta-feira reuniu milhares nas ruas de Lisboa, cerca de 10 mil, segundo a organização, o Movimento Nacional dos Enfermeiros. Com o branco a dominar as roupas e os cravos que seguravam nas mãos, os enfermeiros desfilaram sob o lema "Ninguém solta a mão de ninguém", uma frase que foi bastante divulgada após a eleição do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

Do Parque da Bela Vista até ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, a classe quis mostrar-se unida, teve o apoio dos sindicatos, da Ordem dos Enfermeiros (OE) e do presidente da Aliança, Pedro Santana Lopes.

"O povo saiu à rua no 25 de Abril. Os cravos eram vermelhos, hoje são brancos. Portugal é dos portugueses não é do PSI 20 e do Novo Banco", disse a Santana Lopes, o enfermeiro Hélder Marques, que veio de propósito da Suíça, onde trabalha há 6 anos, para a Marcha Branca.

Na presença do dirigente político, manifestou a indignação. "A revolta de ver os nossos dirigentes a disponibilizarem tempo para fazerem receitas no 'Programa da Cristina' e não terem cinco minutos para estarem aqui com os nossos representantes", afirma, indignado, referindo-se ao primeiro-ministro, António Costa, que foi convidado do programa das manhãs da SIC, na passada terça-feira. "Não queremos propaganda. Queremos que venham aqui, a senhora ministra, António Costa, seja quem for, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que está em Angola mas devia estar aqui connosco, porque Portugal é dos portugueses", reforçou.

Para Santana Lopes "é tempo de chegar a um acordo". "Os enfermeiros têm dado provas de uma identidade profissional fantástica. Nós apoiamos as reivindicações profissionais desta classe", afirmou o presidente da Aliança. E não teme que o acusem de aproveitamento político pelo apoio à luta dos enfermeiros. "O estar solidário com as lutas profissionais tem de deixar de uma vez por todas de ser um feudo ou um exclusivo da extrema-esquerda ou da esquerda mais radical", justificou. "É preciso mais compreensão para com esta luta", defendeu.

Ao lado de Ana Rita Cavaco, bastonária da OE, Santana Lopes aproveitou para deixar um recado ao ministro das Finanças:"O doutor Centeno já tem praticamente garantido o défice 0,0 ou 0,1. Acho que ele não perde a cadeira de presidente do Eurogrupo se for 0,2 ou 0,3 e conseguirmos uma paz social".

Depois de 10 anos a trabalhar em Portugal, Hélder Marques é um dos muitos enfermeiros que deixou o país. São "18 mil enfermeiros emigrados", faz notar a bastonária da OE, Ana Rita Cavaco.

Deixou o país em 2011, quando o governo de Passos Coelho anunciou o corte no subsídio de Natal. Hélder Marques não está arrependido da decisão e diz que os enfermeiros são uma classe profissional valorizada na Suíça. "Com um horário completo, de 40 horas por semana, mas consigo ter uma qualidade de vida que não tinha aqui. Há especialização e é reconhecida, é recompensada, há progressão na carreira, há aumentos anuais", elenca.

Classe "sem medo"

"Sem medo", "A classe acorda", "Não nos calamos", leu-se nos muitos cartazes desta marcha, que mobilizou enfermeiros de norte a sul, das ilhas e também de fora do país. "Conseguimos demonstrar união na classe", afirmou Sónia Viegas do Movimento Nacional dos Enfermeiros. Uma marcha "pela valorização e dignificação da profissão", que no Dia Internacional da Mulher serviu também para homenagear Florence Nightingale, a britânica que é considerada a "mãe da enfermagem" e "as mulheres enfermeiras".

Apesar de não ter conotações sindicais, a Marcha Branca teve o apoio dos sindicatos, nomeadamente o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) e a Associação Sindical dos Profissionais de Enfermagem (ASPE), que organizaram as duas greves cirúrgicas, e o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.

Sindicato vai protestar na Organização Internacional do Trabalho

O advogado Garcia Pereira, advogado do Sindepor, que esteve no desfile, anunciou que vai apresentar um protesto na Organização Internacional do Trabalho e ao Conselho da Europa por "violação do direito à greve e do direito à atividade sindical".

Em causa, está a atuação sobre os enfermeiros nas duas greves cirúrgicas, que motivaram uma requisição civil por parte do Governo e a homologação de um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) a considerar a paralisação ilícita.

Para Garcia Pereira, a requisição civil funciona como uma espécie de "balão de ensaio", que suporta teorias que se passarem incólumes farão com que o direito à greve acabe. No entender do advogado, a luta dos enfermeiros é também um movimento pela democracia.

O advogado disse presente na Marcha Branca porque "como cidadão" entende que se deve solidarizar com uma classe "que tem sido muito mal tratada". "Tem sido injuriada e objeto de uma manipulação da opinião pública como nunca se viu", afirmou ao DN.

Greve geral marcada para abril divide sindicatos

Já Carlos Ramalho, o presidente do Sindepor - uma das estruturas qiue convocou a greve cirúrgica -, anunciou na quinta-feira uma greve geral "dura e prolongada". Esta sexta-feira, na marcha, disse que prefere dar ênfase à união dos enfermeiros, recusando falar em datas. Mas disse que vai ser em abril e que pode estender-se a maio.

Também presente na marcha, Lúcia Leite, presidente da ASPE, outra das estruturas que convocou a paralisação nos blocos operatórios, não concorda com a iniciativa do Sindepor. "Neste momento não considero que é a estratégia adequada, mas nunca deixamos de apoiar as intervenções de outros sindicatos desde que as reivindicações sejam justas e coerentes com as nossas".

A dirigente sindical afirma, no entanto, que a ASPE não vai aderir à greve geral. "Não é nosso objetivo. Entendemos que não é o momento, estamos em fase de audição publica do diploma de carreira e em fase de inicio de processo negocial", justificou. Apesar dos sindicatos não estarem unidos nas negociações, "os enfermeiros estão unidos".

Entrega das cédulas profissionais como gesto simbólico

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, disse que esta marcha branca pela enfermagem veio mostrar que a sua missão enquanto bastonária está cumprida. "Os enfermeiros têm hoje uma identidade e um sentido de pertença", disse no arranque do desfile. Uma marcha que, diz a bastonária, serve também para que se perceba que "os enfermeiros são pessoas com famílias, filhos e que também têm direito a manifestar-se pela sua dignidade".

Considera que "quem de direito" já ouviu muito a voz destes profissionais de saúde. "Têm é de decidir qual é a prioridade para o país. Se é salvar bancos ou investir na vida das pessoas".

O desfile, pautado pela cor branca, fez uma paragem na Ordem dos Enfermeiros, onde alguns profissionais simbolicamente depositaram numa urna as suas cédulas profissionais. "Tem a ver com a forma como acham que devem ser tratados pelo país numa semana em que soubemos que vai ter de haver mais de mil milhões para o Novo Banco. Esses mil milhões davam para resolver os problemas dos enfermeiros, dos técnicos, dos auxiliares e ainda sobraria muito dinheiro".

Margarida Duarte, de 40 anos, foi uma das enfermeiras que mostrou o descontentamento ao entregar a cédula profissional. "É um ato simbólico, já temos as novas cédulas e entregamos as antigas. Estamos aqui também pela população a lutar por melhores condições de trabalho e por melhores cuidados de saúde", afirmou esta enfermeira da USF da Póvoa de Santo Adrião que está na profissão há 18 anos. "Levo 900 euros para casa e tenho dois filhos para cuidar", salientou referindo-se ao congelamento da progressão da carreira.

"Lutar pela enfermagem sempre", lê-se no cartaz que Inês Cerejo, de 35 anos, do Hospital de Vila Franca de Xira,segura, com orgulho. Enfermeira há mais de uma década, é da opinião que a classe tem de lutar pelos seus direitos. "Vamos ser ouvidos", afirmou convicta durante o desfile. "Cada vez mais estamos a regredir em relação ao que se alcançou há 20 anos para os enfermeiros", lamentou. Inês Cerejo foi uma das enfermeiras que aderiu à greve desta sexta-feira, convocada pela ASPE, para dizer presente na Marcha Branca. "Os enfermeiros estão 24 horas por dia com os doentes e isto é também uma forma de sensibilizar a população", defendeu.

De ramo de cravos brancos na mão, Alexandra Queiroz, de 45 anos, foi uma das enfermeiras que viajou até Lisboa num dos cerca de 70 autocarros requisitados para a Marcha Branca. Esta enfermeira da USF de Viatodos, Barcelos, viajou à capital para mostrarque a classe está ao lado dos portugueses e do Serviço Nacional de Saúde (SNS). "Se os profissionais de saúde não tiverem condições dignas de trabalho não conseguimos prestar cuidados de saúde de qualidade", alertou.

Atualizado às 21:23.

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