Em 1954, o ator norte-americano Kirk Douglas interpretava no grande ecrã o papel de Ned Land, hábil arpoador, tornado refém a bordo de um submarino torpedeiro que fazia do mar palco de horror. A par do Douglas, falecido em fevereiro de 2020, aos 103 anos, ombreava na película dos Estúdios Disney, o ator britânico James Mason. Vinte Mil Léguas Submarinas, filme inaugural da era do CinemaScope, entregou a Mason um dos papéis que o destacou na Sétima Arte, o de Capitão Nemo. Este, o anti-herói nascido em 1869 do génio criativo do escritor francês Júlio Verne..Na ficção de Verne, o Príncipe Dakkar, como também ficou conhecido Nemo, apresentava-se como o homem que se afastava de um mundo que não queria, o do século XIX. Nemo, submergiu nas águas de mares e oceanos. Para isso reuniu uma tripulação, construiu uma nave submarina colossal, o Nautilus, e obliterou-se abaixo das ondas. Júlio Verne não apadrinhou com distração o herói da sua novela oitocentista, narrativa que iria conhecer, logo em 1905, uma primeira adaptação cinematográfica em terras do Tio Sam. Dezoito minutos de filme fixavam nos primórdios do cinema a obra publicada em capítulos ao longo de dois anos (1869-1870), na Magasin d"Éducation et de Récréation, revista endereçada à infância e juventude..Vertido do latim, nemo traduz "ninguém", termo que não apadrinhou somente o capitão da fábula de Verne. Nemo designa informalmente um dos polos terrestres. Em 1992, o engenheiro croata Hrvoje Lukatela, assinalou para a posteridade a localização exata de um dos polos de inacessibilidade do planeta Terra. Apoiado em coordenadas geográficas e espaciais, Lukatela vasculhou a solidão do Oceano Pacífico. Aí, numa região sem presença humana e escassamente povoada por vida animal e vegetal, o engenheiro informático apontou o Polo Oceânico de Inacessibilidade, correntemente conhecido como Ponto Nemo. Na prática, trata-se da localização oceânica mais distante de qualquer continente e ilha, sejam estes territórios habitados ou não. Uma solidão apontada com coordenadas precisas - 48° 52.6' S 123° 23.6' O - e que mede o seu afastamento às massas terrestres numa escala de grandes números. Mais de 2800 quilómetros separam este ponto de inacessibilidade de três locais equidistantes que Hrvoje precisou nos seus cálculos: a norte, a Ilha Ducie, atol desabitado pertencente ao arquipélago Pitcairn; a nordeste, Motu Nui, na Ilha de Páscoa e a sul, a ilha Maher, já na Antártida..Um local de tal forma afastado de terra firme habitada que entrega aos astronautas da Estação Espacial Internacional, em órbita 416 quilómetros acima da superfície terrestre, o diploma de seres humanos mais próximos do Ponto Nemo. Entre este e a corrida espacial há mais do que uma relação de proximidade na vertical. Aquela região remota do Pacífico Sul serve há décadas de cemitério a destroços espaciais. Entre estes, partes das 130 toneladas que constituíram a estação espacial MIR. O engenho espacial Russo caía nas águas oceânicas após 15 anos em órbita terrestre..Já em março de 2018, assim como em anos anteriores, a solidão do Ponto Nemo viu-se momentaneamente interrompida com a presença dos veleiros da Volvo Ocean Race, em competição deste Auckland, na Nova Zelândia. Uma visita ao mar de ninguém que serviu também de expedição científica, com o lançamento de boias oceanográficas. Sem o rigor da ciência, mas com o sabor que as narrativas sobre as origens nos trazem, em 1926 o escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft (para a posteridade H.P. Lovecraft), mestre da narrativa de terror, apontava ao Ponto Nemo com uma precisão quase milimétrica. Isto, ao descrever o lugar remoto, casa de um ser primordial. Em O Chamamento de Cthulhu, Lovecraft evoca a criatura monstruosa que se acolhe na cidade submersa de R`lyeh e apresenta-nos as coordenadas: 47° 9' S 126° 43' O. Sessenta e seis anos depois, Hrvoje Lukatela extraía dos seus cálculos a toca da entidade cósmica que assombrava a humanidade na obra de Lovecraft. Cthulhu tornava-se o vizinho do lado do Ponto Nemo.