"A grande doação desta mãe (para o seu filho) foi o seu corpo"
Foi repentino o parto mas houve tempo para alertar o pai do bebé e a família de Catarina Sequeira durante a madrugada. O bebé Salvador nasceu saudável e daqui a um mês deve deixar o hospital. A jovem canoísta de Gaia, em morte cerebral há semanas, doou o seu corpo para que o filho nascesse.
Era meia-noite e meia quando o serviço de Cuidados Intensivos do Hospital de São João detetou que o corpo de Catarina Sequeira, em morte cerebral há 56 dias mas com um bebé no ventre, estava a sentir dificuldades. "Foi repentino, durante a noite. Ela estava nos cuidados intensivos e rapidamente foi detetado. Falaram com a obstetrícia, que foi ver como estava o bebé. Tinha sido avaliado às 21.00 e depois da meia-noite já não estava tão bem, dava sinais de que estava a sofrer. Pensando no melhor para o bebé, decidiu-se que mais valia terminar a gravidez, até porque era um dia antes do planeado e não fazia grande diferença em relação ao previsto", explicou ao DN Marina Moucho, diretora do serviço de obstetrícia do hospital portuense, onde esta madrugada nasceu o Salvador, com 1700 gramas e 40 centímetros. E saudável.
A decisão foi avançar com o plano estabelecido de fazer o parto no dia das 32 semanas e, se surgisse alguma dificuldade, nos dias anteriores, fazia-se a cesariana. "Mal se pôs a hipótese de ele nascer, chamou-se o pai. Na altura em que o bebé nasceu, às 04.32, estavam o pai do bebé e dois irmãos da mãe a assistir", acrescentou a médica, realçando que "o bebé não estava em sofrimento agudo".
A cesariana correu de forma normal, "foi fácil". "O bebé teve algumas dificuldades em respirar, o que é normal. Neste caso, a mãe estava muito medicada." A diretora do serviço explicou que "a mãe começou a ter alguma dificuldade de ventilação, a oxigenar um pouco pior, e ao baixar o oxigénio na mãe o bebé também fica mal oxigenado. Começou a dar alguns sinais de que estava realmente a sofrer".
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Salvador está no serviço de Neonatologia.
© Amin Chaar/Global Imagens (Arquivo)
As 32 semanas, que se completavam nesta sexta-feira, "é o limite a partir do qual a mortalidade neonatal destes bebés prematuros é quase nula e as sequelas também são muito poucas". "Sabemos que os bebés que nascem a partir das 32 semanas têm uma probabilidade de sobrevivência enorme", disse Marina Moucho, pelo que não houve grandes dúvidas. "Um dia não altera muito."
O problema de Catarina Sequeira foi um ataque de asma que originou a sua morte, em dezembro. Quando entrou no Hospital de São João no dia 1 de fevereiro, encaminhada pelo Hospital de Gaia - da sua área de residência -, já o plano estava definido, numa junção de esforços entre obstetrícia e a medicina intensiva, com o equipamento necessário a existir na unidade portuense. Até chegar o dia do parto.
Será uma criança saudável
Carlos Lima Alves, diretor clínico do hospital, disse, nesta quinta-feira, em conferência de imprensa, que o Salvador está na unidade de neonatologia, com "evolução favorável". Explicou que a mãe esteve em morte cerebral entre 27 de dezembro e 28 de março, chegando ao São João a 1 de fevereiro, com "24 semanas e uns dias" de gestação. Quando foi transferido, o plano já estava definido e correu como previsto. Tudo indica que possa ser uma criança saudável, tendo atualmente "necessidade de apoio, o que é normal num bebé prematuro que nasce de cesariana", explicou Hercília Guimarães, diretora do serviço de Neonatologia. Os médicos admitem, contudo, que não sabem até que ponto o problema da mãe, em dezembro, possa ter afetado o bebé, o que irá ser continuamente avaliado futuramente.

Cinco responsáveis do Hospital de São João explicaram o caso.
© Amin Chaar/Global Imagens
Ao longo dos 56 dias de internamento com suporte orgânico à grávida em morte cerebral, houve problemas com a mãe que contudo "o serviço de medicina intensiva foi capaz de resolver", como frisou Teresa Honrado, diretora deste serviço.
Decisiva para o sucesso foi a coordenação de todas estas equipas do hospital. "A multidisciplinaridade foi fundamental para não cometer exageros. Ventilar um corpo morto para levar a bom termo uma vida é uma decisão que, depois de tomada, não é definitiva, sob pena de se poder entrar na desproporcionalidade", disse Filipe Almeida, presidente da Comissão de Ética do hospital.
"A grande doação desta mãe não é um coração ou um pulmão ao filho mas é ela mesmo que se doa para que o filho viva. Portanto é nossa obrigação tomar esta decisão nesta perspetiva"
Em declarações ao DN, o médico realçou que este foi "um caso com questões éticas que têm de ser pensadas para não se fazer disparates". A primeira questão que se levantou foi decidir logo "no início se se deve fazer ou não fazer uma intervenção num corpo morto". Neste caso, "percebeu-se rapidamente que sendo um corpo morto era legítimo intervir em nome do benefício do filho que estava vivo".
Em termos jurídicos e éticos, a questão passava pela "possibilidade de sermos dadores - e só não somos se o dissermos". Esta mãe era dadora e havia assim a possibilidade de doar "alguma coisa de si a alguém". "A grande doação desta mãe não é um coração ou um pulmão ao filho mas é ela mesmo que se doa para que o filho viva. Portanto, é nossa obrigação tomar esta decisão nesta perspetiva", explicou Filipe Almeida.
O pai da criança colaborou totalmente com o hospital e "houve total consonância", diz o médico. E se não houvesse? "A decisão tem de ser fundamentada no bem deste filho. Na eventualidade de um pai, por exemplo, não querer que esta intervenção fosse feita, não teríamos certamente nenhuma legitimidade, nem ética nem jurídica, para o fazer. Mas o pai não é o filho nem é dono do corpo da mulher. Ela nunca tinha dito que não queria ser dadora e, não o tendo dito, é considerada como dadora. Se é dadora e se há alguém a precisar da sua dádiva, eu tenho de o fazer", afirmou ao DN Filipe Almeida.
"A mãe nunca tinha dito que não queria ser dadora e, não o tendo dito, é considerada como dadora. Se é dadora e se há alguém a precisar da sua dádiva, eu tenho que o fazer."
Esta é a fase inicial das decisões. A situação levanta mais questões como "perceber se o filho pode ou não ter condições de perspetiva de vida saudável, de qualidade de vida, que é sempre um termo muito complexo, para justificar a continuidade" da intervenção. "Vamos imaginar que neste processo de 52 dias nós tínhamos conseguido identificar uma hemorragia cerebral nesta criança. Teria de ser questionada a legitimidade de continuar esta intervenção. Seria certamente distanásia se o fizéssemos porque havia uma desproporcionalidade nos objetivos do nosso tratamento. Não iríamos obrigar um filho a nascer quando sabíamos, por exemplo, que ele não iria sobreviver", disse o presidente da Comissão de Ética, unidade que "não toma decisões, apenas aconselha os serviços a tomar a decisão". Neste contexto, foi preciso, "de forma continuada, aferir que não estávamos em encarniçamento terapêutico", isto é, a fazer tratamentos inúteis ou desproporcionados.
De resto, a área da obstetrícia levanta frequentemente dúvidas em como atuar. "Há questões de ética que nos obrigam a reunir com frequência com as equipas. É uma disciplina que trata e trabalha com seres de muita vulnerabilidade. Uma criança que possa nascer às 24 semanas, mesmo com uma mãe viva e não doente, levanta questões muito sérias. E muitas vezes temos de conversar para tomar as decisões, como, por exemplo, decidir entre a vida da mãe ou do filho", resumiu Filipe Almeida.
Este foi o primeiro caso de nascimento de um prematuro de uma mãe em morte cerebral no Hospital de São João, mas a situação não é inédita em Portugal. Em 2016, Lourenço nasceu no Hospital de São José, em Lisboa, depois de a mãe ter estado ligada às máquinas até às 32 semanas de gravidez. O feto sobreviveu 15 semanas na barriga da mãe que estava em morte cerebral depois de ter sofrido uma hemorragia intracerebral.
Funeral de Catarina realiza-se hoje
O corpo da mãe, Catarina Sequeira, já foi entregue à família que agora poderá fazer o funeral que se realiza nesta sexta-feira às 15.00. A certidão de óbito já estava passada antes do nascimento de Salvador. Foi um ataque de asma que roubou a vida a esta jovem de 26 anos, residente em Vila Nova de Gaia e com um passado recheado de êxitos na canoagem portuguesa. Representou Portugal em europeus e mundiais da modalidade da qual foi praticante no Clube Náutico de Crestuma e no Douro Canoa Clube. Ganhou um total de 41 medalhas, 17 delas de ouro, em várias categorias, dos infantis aos seniores.
A asma acompanhava-a desde a infância mas nada fazia prever que um ataque agudo lhe viesse a ditar a morte, declarada a 27 de dezembro passado, dias depois do ataque. Estava grávida de 12 semanas, fruto da relação com o namorado, e até ao dia em que deu à luz passaram 56 dias. "O desafio foi manter o corpo e órgãos vitais. Foram quase 60 dias, com todo o suporte necessário até haver condições para o parto", disse Teresa Honrado, do serviço de medicina interna.
Conseguido o objetivo prioritário de chegar ao parto bem-sucedido, agora vem o futuro. Salvador irá ficar de três semanas a um mês no hospital, "normal para um prematuro", e depois "um dia irá saber como a mãe morreu", diz o médico Filipe Almeida, lembrando que, apesar de ser órfão de mãe, tem um pai. O impacto psicológico é relevante, admite. Por isso os familiares tiveram sempre acompanhamento psicológico no hospital. Mas não é fácil.
A mãe de Catarina ainda ontem, no Programa da Cristina, na SIC, mostrava-se perturbada. "Ainda não vi o meu neto, também não houve possibilidades, posso parecer um bocado crua, mas tão cedo não tenho capacidade para o ir ver. Quero fugir disto tudo. Primeiro tenho de deixar partir uma pessoa para receber outra", disse, emocionada, Maria de Fátima Branco. Sabe, no entanto, que irá conviver plenamente com o neto. "Tenho de aceitá-lo plenamente sem esta escuridão que tenho cá dentro, sem este rancor, sem esta confusão de sentimentos."