Tragédia

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Estávamos aqui há um ano quando a criança morreu. Era um menino, pequeno ainda. Costumava ir tratar das vacas com o avô, como apenas os mais felizes de nós puderam fazer. Num triste dia de Outono, o tractor resvalou.

A história, tão rural na iconografia como humana no resultado, lembrava-nos como basta uma distracção. Uma pequena distracção e pode destruir-se tudo - todo um sistema de vida, toda uma possibilidade, o próprio amor.

Andámos dias em choque, como toda a gente. Não tínhamos chegado a conhecer a criança, algures das freguesias da costa Norte. Mas havia alguma coisa nos relatos. Falávamos daquilo ao jantar. A Catarina conheceu um familiar e chegou a casa a tremer.

Depois começaram a surgir os vídeos.

Ou talvez não tenham começado depois. O mais provável é que tenham começado logo. Eu vi o primeiro ao fim de três ou quatro dias. Havia uma foto do menino e, por detrás dele, resplandecente, uma imagem de Cristo, estendo a mão.

Isto foi no Facebook, mas havia no YouTube também. Um vídeo, dois vídeos, um monte de vídeos. Fotografias. Montagens com a imagem do menino. Arcos-íris e pores-do-sol. Canções melancólicas das playlists FM. Frases de efeito roubadas à literatura cor-de-rosa.

Assinaturas de pé de página: a marca-de-água do homenageante. Num caso, duas assinaturas - um trabalho de equipa.

Foi a semana em que pela primeira vez pusemos a vida no campo em perspectiva. Pareciam dedicados a uma criança morta, aqueles memoriais. Mas, afinal, destinavam-se a provar que os seus distribuidores, amigos diligentíssimos, eram igualmente protagonistas do infortúnio - que as atenções daquela história também lhes pertenciam.

Toda a fealdade desta espécie conseguia, de repente, concentrar-se num conto só. Nisso, não havia diferença entre o campo e a cidade.

neto.joel@gmail.com

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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