Toy Story

Depois de <i>Toy Story 3</i> uma certeza é mais forte do que as outras: ninguém vai conseguir deitar fora, doar ou desfazer-se dos companheiros de brincadeiras de infância. Esta quinta-feira os brinquedos saltam da prateleira e ganham vida outra vez, num cinema perto de si.<br /><br />
Publicado a

Em Toy Story 3, 15 anos depois do primeiro capítulo, a personagem principal, Andy, já está crescida. É tempo de fazer as malas e zarpar até à faculdade, deixando para trás os caixotes de brinquedos antigos, que só não ganharam pó porque ganhavam vida quando ninguém estava a ver.
É a Andy que cabe a difícil tarefa de decidir: que fazer aos brinquedos que o acompanharam durante toda a infância? Um pequeno passo em falso lança os amigos Woody, Buzz, Jessie, Sr. e Sra. Batata e os outros na maior aventura das suas pilhas. Pelo caminho fazem novos amigos – como Ken, que se junta à Barbie – e vilões, como um Nenuco gigante e o peluche Lots-O, a personagem que mais tempo demorou a criar: mais de um ano e meio para fazer nascer um peluche cor-de-rosa com sabor a framboesa que se revela o mau da fita. No total, 302 rostos animados foram criados com a tecnologia de ponta da Disney Pixar, em filmes que se querem, nas palavras da produtora Darla K. Anderson, «clássicos intemporais que possam ser vistos daqui a 15 anos e com os quais as pessoas continuem a identificar-se».
Por norma, cada filme de animação gerada por computador – também chamada CGI (Computer Generated Imagery) – demora quatro anos a desenvolver-se. O caso de Toy Story 3 não foi diferente: dois anos e meio para escrever o guião, sempre sob o olhar atento de Lee K. Unkrich, o realizador, e Darla K. Anderson, a produtora. Os restantes, com diferentes equipas dedicadas a cada grupo de personagens (só em Lots-O trabalharam em técnicos) que ao longo do filme criaram mais de 92 mil storyboards – gráficos com ilustrações organizados numa sequência que torne possível visualizar a história do filme.
Para Darla Anderson muito mudou desde que, há vinte anos, os filmes eram a duas dimensões e se faziam de bloco em punho. Nessa época, garante em conversa com a nm, «a animação era uma arte pura, difícil». E as «três dimensões» não vieram facilitar a criação dos filmes que chegam em catadupa acompanhados de óculos pretos e lentes especiais: «Continua a ser tudo muito difícil, tem de se desenhar frame por frame, recriar cada movimento para ser o mais real possível. Todos os filmes são difíceis à sua maneira, mas aqui o desafio é aliar a tecnologia de ponta aos nossos valores, que queremos que sobrevivam ao teste dos tempos», conta Darla.
Nas vozes inconfundíveis de Tom Hanks (Woody), Tim Allen (Buzz), Joan Cusack (Jessie) ou Ned Beatty (Lots-O) escondem-se personagens que a produtora gostaria que inspirassem uma geração. «O que eu mais gosto na história é que não temos protagonistas perfeitos. O Woody falha muito, comete erros, não é perfeito, mas na sua génese tem valores como lealdade, coragem, liderança, aos quais devemos aspirar. Gostava que as crianças aprendessem com isso, mas temos noção de que é uma grande responsabilidade fazer filmes que tenham este peso na formação pessoal», explicou.

O instinto como guia
Porque o filme é sobre e para crianças são também elas que, no final do dia, têm uma palavra a dizer. «Confesso que em momentos em que estava francamente indeciso sobre que fala escolher para uma determinada cena contei com a ajuda da minha filha de 11 anos para me ajudar. Sempre tive um feedback muito bom deles, e a opinião pesa e ajuda, mas no final do dia tenho de contar é com o meu instinto», contou o realizador.
É também por ele que Darla se guia. «Como em todos os trabalhos há muito que se aprende, que se ganha com o tempo, mas sem dúvida que aqui a maior parte do produto nasce porque tenho bons instintos, fundamental para quem quer trabalhar na Pixar. Quanto mais praticamos melhores ficamos. Hoje em dia trabalho tanto como antes, mas vivo menos aterrorizada com as escolhas que faço», brinca a produtora.
A tecnologia trouxe uma nova magia a quem está por detrás desta nova aventura dos brinquedos que ganham vida. Novas ferramentas para os artistas trabalharem e se exprimirem, «uma forma cada vez mais inovadora de acompanhar a exigência dos argumentos», explica Lee. Mas também trouxe ambiguidade. Na Pixar, psicólogos e analistas comportamentais garantem: as crianças estão a ficar mais velhas do que os anos que têm e precisam de brincar mais. E a Pixar, apesar de comercializar também videojogos dos filmes que cria, apoia incondicionalmente as brincadeiras como «antigamente». «O Lee costuma dizer que quando as crianças se ligam a um videojogo estão num espaço que outra pessoa criou. Mas quando são os nossos brinquedos, nós criamos o nosso mundo, enfrentamo-lo criando a nossa própria voz, conquistando o nosso lugar», conta Darla.

O melhor emprego do mundo
Segundo o realizador, na Pixar ninguém precisa de motivação, mesmo que diariamente regressem ao escritório com o mesmo objectivo com que entraram na véspera e nos dias anteriores: criar desenhos realistas, com movimento coordenado, pêlo, peso, profundidade. «Felizmente trabalho com pessoas que vivem para se superar. E é na sua excelência que encontram motivação», revela. «Para quem está de fora, passar mais de um ano a criar um boneco pode parecer frustrante, mas aqui nunca é. Há uma paixão, uma ambição tal que não deixa o desalento instalar-se», acrescenta.
Toy Story foi o primeiro filme criado inteiramente com CGI  e rapidamente se tornou o maior êxito de 1995, conquistando 285 milhões de euros em bilheteiras por todo o mundo. Tinha 77 minutos, 1561 shots de imagens e 76 personagens, incluindo os humanos. Reuniu três nomeações para Óscares e é hoje um dos «100 Melhores Filmes Americanos» de sempre, votado pelo American Film Institute.
Década e meia depois regressa, no último episódio com 93 minutos de acção, 85 minutos de música, mais de trezentas personagens e quase cem mil shots de imagens. Toy Story 3 fala de mudança. Nas palavras do realizador, «fala de abraçar as transições inevitáveis que surgem ao longo da vida. Woody e os outros brinquedos sabiam que Andy, o seu dono, ia crescer, mas viviam o dia-a-dia sem preocupações. E aquilo que pensavam que era “o depois”, ou “mais tarde”, chegou, e têm de lidar com isso». Para Darla, o terceiro filme da saga é um processo de aprendizagem: «Queremos que as pessoas reconheçam estas mudanças na vida como algo positivo. E não precisam de livrar-se da bagagem que acumularam. Isso torna-as humanas e apaixonantes. É esta a mensagem. Além de que não tem mal nenhum ficar com os brinquedos com que se passava tempo em criança.»

Digital mas emocional
Quando Roy Disney, sobrinho de Walt Disney e figura tutelar dos Estúdios Disney e do seu departamento de animação, esteve em Portugal no princípio dos anos 1990, tive oportunidade de o entrevistar. No final da longa conversa, Roy Disney descreveu-me, entusiasmadíssimo, os novos projectos de longas-metragens de animação em que a Disney estava a trabalhar, sob a orientação de Jeffrey Katzenberg, chamando-me a atenção para um filme inovador em preparação, com uma companhia chamada Pixar, uma aventura com brinquedos totalmente feita por computador, uma novidade absoluta.
Quando o tal filme, chamado Toy Story – Os Rivais, realizado por um novo prodígio da animação chamado John Lasseter, chegou aos cinemas em 1995, percebi o que Roy Disney tinha querido dizer. Não era só um novo e vasto horizonte que se abria para o cinema animado, e para a utilização da tecnologia digital no cinema. Toy Story abria também uma nova e larga porta para o cinema em si.
O filme inaugurou uma parceria entre a Disney e a Pixar tão rica do ponto de vista comercial como da criatividade artística e técnica, foi a primeira animação de longa-metragem a ser nomeada para o Óscar de Melhor Argumento Original (além dos de Banda Sonora e Canção Original), entre outros recordes e premiéres, e é hoje referido pelos homens da Pixar como «a nossa Branca de Neve e os Sete Anões» – disse-me, há dias, Lee Unkrich, o realizador de Toy Story 3, que passou por Lisboa para dar entrevistas sobre o último título da trilogia iniciada há 15 anos.
Quem pensou ao ver Toy Story – Os Rivais que o filme de John Lasseter iria, a longo prazo, mudar a face da sétima arte, só pecou por defeito. Os efeitos especiais gerados por computador rapidamente se tornaram no pão nosso de cada dia da indústria cinematográfica, tendo extravasado para a televisão, a publicidade e os jogos de vídeo, e o digital acabou por tomar conta quase totalmente da animação produzida nos grandes estúdios americanos (destes, só a Disney – em nome e memória da tradição – continua a fazer uma longa-metragem animada por técnicas convencionais por ano), com uma nova estética a ser imposta pelas novas técnicas.
Mas a outra impressão – fortíssima – deixada por Toy Story era de uma ordem que não a do espanto proporcionado por um filme animado onde a informática tinha dispensado por completo a utilização de lápis, pincéis, tintas e folhas de acetato. E essa impressão era a de que, apesar da total predominância dos computadores, a presença humana por trás deles tinha ficado intacta e estava omnipresente na construção e desenvolvimento da história, na credibilização, caracterização e no comportamento das várias personagens figuradas nos brinquedos, com o cowboy Woody e o astronauta Buzz Lightyear à cabeça, e no sentido de humor permanente.
Dito de forma mais sucinta: não havia nem pinga de frieza tecnológica em Toy Story – Os Rivais, um filme que regurgita de emoções, agita-se de alegria e estreleja de piada por todos os lados. Poucos são os filmes, animados ou de imagem real, em que os computadores têm uma predominância tão grande, que sejam tão intensa, profunda e jubilatoriamente humanos como Toy Story, capaz de tocar desde o miúdo que começa a abrir os olhos para o cinema, até ao adulto mais batido nestas coisas das fitas. E o filme é tanto mais brilhante porque resiste à tentação de humanizar em excesso os brinquedos, o que os poderia levar à sentimentalização mais piegas.
Como notou o ex-Monty Python Terry Gilliam, ele próprio também realizador e com formação em animação (da qual se encarregou na série de televisão dos Python e em todos os filmes do grupo) e grande fã de Toy Story: «O filme é uma criação de génio. Faz as pessoas perceber o que é ser um brinquedo. Eles são sempre fiéis às suas respectivas personalidades. E isso é brilhante.» Tal como é brilhante fazerem-nos identificar com brinquedos e vibrar com o que lhes acontece, seja cómico, seja dramático, sem que nunca deixemos de estar cientes daquilo que eles são.
Roy Disney tinha razão. O tal filme animado todo feito por computador foi mesmo pioneiro, inovador e revolucionário. Mas sendo tudo isso, soube também ficar fiel aos melhores e mais consagrados valores da tradição de contar histórias por imagens do cinema clássico. Seja ele feito com bonecos animados seja com intérpretes de carne e osso. EURICO DE BARROS

Factos toystoryanos
• O realizador de Toy Story 3, Lee Unkrich, empresta a voz a uma fala do filme quando a personagem Jack in the Box grita «Novos brinquedos!», à chegada de Woody e companhia à creche de Sunnyside.
• Escondida no armário de Andy pode ver-se uma pista de uma nova personagem que surgirá no filme Carros 2.
• A personagem do urso de peluche Lots-O – que demorou mais de um ano a criar – tem 3,5 milhões de cabelos organizados por diferentes camadas.
• A personagem de Ken muda de roupa 21 vezes ao longo do filme.
• Quatro dos animadores que criaram personagens e ambientes em Toy Story 3 participaram também nos dois primeiros filmes. Dezassete deles estiveram também na produção de Toy Story 2.

Diário de Notícias
www.dn.pt