Temporal

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Temos a salamandra acesa, mas podíamos não ter. Esta não é uma normal noite de Inverno. E, além disso, já não estamos no Inverno.

A chuva atira-se contra os vidros, como um condenado que não tem por onde fugir. O vento ruge por entre as acácias, as copas num remoinho. Toda a casa treme: as portas, as janelas, o telhado.

Apresso-me a correr os ferrolhos.

Ainda não faltou a luz. É provável que falte.

Volto a sentar-me no chão, ao lado do Melville, mesmo em frente ao lume. Na estrada quase não passam automóveis agora. Não há pescadores no mar. Imagino as famílias reunidas à mesa, pelas salas de estar, entreolhando-se.

Lembro-me dos temporais da infância. Aquela semana em que o Mário Soares ganhou. Antes disso, quando vivíamos no celeiro norueguês. Um pouco mais tarde, durante a primária. Nós os quatro fechados na cozinha, à luz do petromax, com o vento arremetendo lá fora. Uma lamúria baixinha, de tédio e de medo. E, no entanto, uma espécie de comunhão.

Faltava sempre a luz.

Hoje não falta a luz.

Que pena não faltar a luz. Não há solidão quando falta a luz. Se um dia quisermos compreender o desconcerto humano desde a revolução industrial, teremos de começar por aí. Depois logo se trata do anterior.

Celebramos um Inverno de sol, como foi este, mas depois parece que alguma coisa ficou por concretizar. Os Açores são mais Açores num dia de temporal. Ou então há naquele sol extemporâneo um efeito qualquer sobre o nosso metabolismo - o mesmo efeito que sentem esses que trabalham de noite e dormem de dia, e que a certa altura perdem mão na passagem do tempo.

Felizmente, há Abril. Devemos--lhe sempre muito. Abril é o melhor mau mês do ano.

Gostava de morrer num dia de temporal. Num dia de temporal, estou mais perto de acreditar em Deus.

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