Serpa
A Casa nunca conheceu outro nome. Sempre foi apenas A Casa, assim mesmo, com artigo definido e letra grande, aumentada depois pelo nome certo do seu lugar: A Casa de Serpa. Assim lhe chamavam os antigos donos, que eram gente do Algarve. Assim lhe chamaram também Sílvia e Miguel, gente da margem sul do Tejo que aqui chegou em 2002, ela uma farmacêutica ao encontro de um emprego garantido, ele um professor de Filosofia em busca de colocação. É deles esta história inspiradora da arte e engenho de mudar de vida. A Casa é o cenário.
Quem a olha de frente, não lhe adivinha os cantos. Voltada ao Adro do Salvador, não mostra mais que a breve fachada, porta estreita, duas janelas. Mas A Casa, velha de duzentos anos, é grande como só as casas de família sabem ser. No piso térreo há seis bons quartos, cada um de sua decoração, todos de estilo mimoso alentejano, guardados por tectos em abobadilha e o sossego fresco das paredes em pedra caiada. Há a cozinha de porta aberta, a sala ampla de recantos que convidam, o terraço grande.
Lá em cima, há mais casa, a que se resguarda em intimidade. É lá que moram Sílvia e Miguel, mais a Maria de oito anos, o Simão de seis, a Salomé de quatro, a Madalena de dois e em breve outra inquilina, que nome ainda não tem. Por estes dias, Maria e Salomé passam férias com os avós. Mesmo assim, A Casa vai cheia. E a inspiração desta história passa por aqui: pela originalidade de um casal jovem de 36 anos - ela quinze horas mais velha - que se atreve a ter cinco filhos, à moda antiga, com a naturalidade de quem se sente abençoado. Mas a história pede para começar a ser contada mais de trás.
Sílvia e Miguel estiveram colocados nas Furnas, São Miguel, durante cinco anos. Por lá tentaram a sorte com a mesma disponibilidade de ir e ficar que os haveria de trazer até à margem esquerda do Guadiana. E foi lá que a família cresceu até aos cinco. Uma proposta de trabalho certo para ela chamou-os até Serpa. Eis então outra originalidade nesta história inspirada: é que a Serpa deste tempo, com os seus imensos mil cento e poucos quilómetros quadrados de paisagem envelhecida, não é terra de chamar gente. Pelo contrário. Entre 2001 e 2004, a população do concelho caiu em número de 700. Mas foi precisamente então que os cinco aqui chegaram.
Sílvia começou a trabalhar, Miguel a procurar casa. Não esta, mas uma casa que os pudesse servir. "Tínhamos três filhos e nunca tínhamos tido casa própria", lembra Sílvia. "Achámos que era tempo de saber qual a sensação de comprar um quadro para pendurar numa parede que é nossa." Vieram ter a esta, com anúncio de venda posto. À primeira tentativa, Miguel nem entrou. "O dono falou que estava preparada para turismo rural, licenças pedidas e tudo. Fiquei-me pela porta." Mas não havia que perder e voltaram. "Foi um clique", diz Sílvia. "Soubemos que a queríamos e não desistimos dela. E por cada dificuldade que atrasava a compra, logo aparecia a solução. Tudo se conjugou com uma certeza incrível."
E assim permanece conjugado, três anos depois. Sílvia atende na farmácia Central, Miguel vai dividindo anos entre o ensino e trabalho de bibliotecário. E têm A Casa (Adro do Salvador, 28 - Tel. 284 549 238), que não é residencial nem hotel, porque mantém sempre a porta aberta e a disponibilidade que só se acha nas paredes familiares.
Sílvia gaba-se da "vivência incrível que A Casa tem dado aos miúdos. Porque vivem numa terra pequena, mas vivem numa casa aberta ao mundo." Por aqui já passou gente do Alasca a caminho de Espanha para observar toupeiras, um ciclista americano na partida de uma volta à Europa, uma equipa de filmagens de portugueses e corsos que se instalou de armas e bagagens para filmar um documentário de homenagem a Michel Giacometti no meio da sala. "São experiências incríveis que A Casa nos tem dado também a nós", sorri Miguel.
A Casa abriu portas de imprevisto, em Março de 2003, a pedido de um evento desesperado para alojar convidados. "Não sabíamos o que fazer. Tudo de improviso, muita vontade de receber bem, mas sem saber bem que fazer." Resultou. O primeiro cliente, um pintor, quis agradecer deixando à Casa um quadro de oferta, que Sílvia pôde enfim pendurar numa parede que é sua. Haveria de voltar, o pintor, como quase toda a gente que vai passando neste lugar que recebe como quem convida.