Sangue

Para Nina M. Pascal<br /><br />
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O autor
João Tordo nasceu em Lisboa em 1975. Formou-se em Filosofia e estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e em Nova Iorque. Publicou três romances: O Livro dos Homens sem Luz (2004), Hotel Memória (2006) e As Três Vidas (2008), que recebeu o Prémio José Saramago em 2009. É escritor, guionista, cronista e tradutor. Publicou, entre outros, n’O Independente, Sábado, JL, Elle e na revista Egoísta. Em Setembro publica o seu próximo romance, O Bom Inverno, na Dom Quixote.


Passei o Verão sozinho. No Outono decidira escrever um romance mas nada aconteceu; foi-se a Primavera e, quando o calor de Julho chegou e se instalou, pesado e teimoso, nas ruas da cidade, eu já estava para lá de perdido dentro de mim próprio. Foi também o Verão em que Nina me abandonou para sempre. Já vos explico.
Falei-vos da minha família noutras ocasiões. Tenho uma mulher, Adina, e dois filhos, Bia e Joaquim; estou divorciado da primeira e, quanto aos miúdos, vejo-os quando é possível: ocasionalmente, passam o dia comigo até a mãe os vir buscar ao fim da tarde. Também trabalho, embora cada vez menos. Sou jornalista numa revista de política internacional mas opero num regime que me permite, grande parte do tempo, trabalhar em casa. Houve quem julgasse que o problema era precisamente esse, o estar demasiado em casa. As pessoas têm opiniões sobre tudo; eu sabia bem que estavam erradas, que o problema tinha sido eu não saber viver com a minha mulher nem ela saber viver comigo, embora nenhum de nós soubesse viver só. Também havia a circunstância de, desde há muito, eu me encontrar apaixonado por Nina, uma amiga de Adina que se tornou minha amiga e, mais tarde, uma das secretas razões da separação.
De maneira que quando o calor chegou já eu vivia, desde o Outono, numa estranha intermitência entre uma vigília sonâmbula e um sono profundo que me remetia a um outro mundo, silencioso e remoto, onde era mais fácil existir. Por vezes imaginava – em noites infindáveis, sentado no sofá da minha pequena sala a fumar cigarros com a televisão ligada, sem som – que, num sofá à minha frente, se encontrava um homem em tudo idêntico a mim que me escutava atentamente, também ele triste e melancólico, a cabeça repousada na palma da mão, o cotovelo apoiado no braço do sofá, assentindo, de vez em quando, em sinal de presença; por vezes respondia, por vezes calava, por vezes também se ria de mim, um riso sardónico e amoral que me chegava de uma distância longínqua e ressoava nos meus ouvidos como uma orquestra desafinada. Assim eram os tempos.   
Durante o Verão, Bia passava apenas uma tarde por mês em minha casa; Joaquim, por seu turno, vinha todos os fins-de-semana. Desconheço se a ausência de Bia se deveu à influência da mãe ou se, aos 11 anos, a miúda já compreendera a inutilidade do tempo gasto comigo. Era evidente, no entanto, que a nossa relação se encontrava para lá de qualquer hipótese de apaziguamento: no olhar dela via o olhar recriminador de Adina; nos traços do seu rosto mestiço via os traços mestiços da sua mãe; por vezes, tinha de me esforçar para não a insultar ou, num assomo de raiva incontida e irracional, para não lhe dar um encontrão quando passava por mim no corredor e deixá-la estendida ao comprido na carpete. Tal como desejava ter feito a Adina. Estes instintos – doentes, pueris – estavam dentro de mim, secretos, à espera de uma oportunidade para virem à superfície provocar uma catástrofe numa vida já de si a caminho de uma lenta derrocada.
Tinha passado um ano e meio desde que vira Nina. Ela viajara, eu divorciara-me, a vida separara-nos. Em Agosto, o telefone tocou. Sabendo que, nessa tarde, eu estava com Joaquim, sugeriu fazer-nos uma visita. Apareceu uma hora depois do telefonema e, ao vê-la entrar no apartamento – tinha agora o cabelo ruivo bastante curto, pouco abaixo das orelhas, e as sardas que lhe cobriam o rosto despertas pelo sol –, senti pela primeira vez o verdadeiro peso do isolamento a que me remetera. A presença de Nina, que sempre trouxera consigo vida, luz e uma forma dissimulada de esperança, serviu nesse momento, e apenas, como contraponto ao meu estado de espírito sorumbático. Presa do egoísmo, olhei-a como se também ela fosse o inimigo.
«Olha para isto», disse Nina. «Vives numa pocilga e, ainda por cima, cheira a homens que não gostam de tomar banho.»
Joaquim riu-se e foi sentar-se ao lado de Nina, que o abraçou e lhe afagou o cabelo. Tínhamos o computador portátil ligado na mesa da sala, e também roupa suja, caixas de pizza, copos meio cheios e jornais por todo o lado.    
«Desculpa a desarrumação», disse-lhe. «Temos estado a trabalhar desde manhã, e a mãe vem buscá-lo ao final da tarde.»
«Oh, vim interromper», lamentou Nina. «Estavam a trabalhar em quê?»
Olhei para Joaquim. Ele sorriu, desdentado, e explicou-lhe que estávamos a escrever um livro de aventuras.
«Vai ser melhor do que o Harry Potter», garantiu.
Joaquim levou o computador para o quarto e pôs-se a jogar um jogo qualquer. Preparei duas bebidas e fiquei frente a frente com Nina, primeiro num silêncio um tudo-nada embaraçoso, depois a fingir que prestava atenção ao que se tinha passado no último ano e meio da sua vida. A minha atenção despertou quando me contou que conhecera, numa viagem recente à Tunísia, um jovem romancista inglês chamado John McGill com o qual estava a viver uma paixão intensa, dividida entre hotéis londrinos e estâncias de turismo em lugares exóticos.
«E o trabalho?», perguntei.
«Tirei uma licença sem vencimento por um ano», respondeu. «Ainda tenho algum dinheiro da herança do meu avô e pareceu-me que era altura de aproveitar.»
«Parece-me uma excelente ideia», disse, sem qualquer entusiasmo.
«Posso fazer-te uma pergunta?»
«Já fizeste.»
«O quê?»
«Quando perguntas se podes fazer-me uma pergunta, já fizeste uma pergunta.» Fiz uma pausa e inspirei fundo; contive a irritação. «Esquece. Diz.»
«Há quanto tempo é que não sais de casa? Jantar fora, beber um copo, ir ao cinema?»
Esforcei-me por pensar.
«Sei lá. Prefiro estar aqui. Dentro de portas a única pessoa que corro o risco de magoar sou eu mesmo.»
«E se eu te dissesse que há um mundo lá fora e que gostava que o visses?»
«Perguntava-te porquê.»
«Porque tenho saudades tuas, estúpido.»
As palavras doeram-me como murros. Havia muito tempo que uma mulher não era afectuosa comigo; havia muito tempo que não recebia sequer uma carícia. Tinham passado mais de três anos desde a última vez que tivera relações com Adina e, subitamente, as palavras de Nina pareceram-me um convite – se não um convite para sexo, ao menos um convite para algum calor humano. Um instante passado, contudo, as palavras transformaram-se num insulto, uma provocação do mundo na forma de uma esmola que se oferece ao pobre.
«Estou muito bem aqui, obrigado», respondi, levantando-me, começando a arrumar a sala como se isso fizesse sentido naquele momento.
«Não me pareces muito bem.»
Nina tirou um cigarro de um maço de Mayfair e preparava-se para o acender.
«Importas-te de não fumar aqui dentro?», disparei, ríspido, sem a olhar.
Nina guardou o cigarro.
«O que é que se passa contigo? Queres falar do assunto?»
Levei duas mãos cheias de pratos e copos sujos à cozinha e, quando regressei, sentei-me no sofá em frente dela.
«Não, não quero falar do assunto. Deixa-me perguntar-te uma coisa: quanto tempo é que passou? Um ano e meio? Ou foram dois? E tu entras aqui, com o teu bronzeado e os teus planos fantásticos de uma vida ao sol com um romancista, e esperas o quê ? que eu abandone a minha vida, esta, a de todos os dias, a única que tenho, para te levar a sair e entreter-te nos intervalos da tua magnífica existência?»
Nina fitou-me durante um longo momento, o azul dos seus olhos de repente nebuloso, marejado; parecia incrivelmente magoada com o que acabara de ouvir.
«De onde é que te vem essa crueldade toda?»
«Sei lá», respondi. «Se calhar vem do facto de viver aqui sozinho como se as coisas sempre tivessem sido assim. Como se nunca tivesse tido uma família, depois de ter sido literalmente escorraçado de casa por aquela cabra com quem, um dia, num acesso de estupidez, decidi casar.»
«Por favor, não digas essas coisas», implorou Nina. «Pára.» A mão que segurava o maço de cigarros tremia-lhe, e uma lágrima começara a descer-lhe pelo rosto. Baixei a cabeça e fitei a carpete cinzenta, carcomida pelo tempo.
«Desculpa», disse, sem qualquer arrependimento. «Acho que estou a ficar louco.»
«Como é que eu podia adivinhar?», continuou ela. «A Adina simplesmente disse-me que se tinham separado, mais nada. Julguei que tivesse sido um divórcio pacífico, de comum acordo.»
Soltei um riso irónico. «Nada é pacífico quando as pessoas deixam de se amar. Quando chega o ódio, então, é uma sensação de tal maneira libertadora que se torna difícil fugir-lhe.»
«Eu percebi que foi mais difícil para ti. Mas não pensei que te tivesse mudado tanto.» Nina levantou-se, colocou o maço de tabaco dentro da carteira e esfregou as mãos nas calças de ganga. «Acho que me vou embora, então.»
Deixei que caminhasse até à porta da sala e depois ergui-me.
«Espera.»
Ela voltou-se e, naquele segundo, à luz evanescente da tarde de Verão que entrava pela janela, a imagem do seu corpo encheu o meu corpo de desejo.
«Sempre queres ir beber o tal copo?», perguntei. «A Adina está quase a aparecer para vir buscar o miúdo.»
Nina hesitou e então acedeu. Pouco depois, Adina tocou à campainha, eu pus a mochila aos ombros de Joaquim e vi-o desaparecer pelas escadas. Fizemos um compasso de espera e depois saímos. Fomos a pé até um restaurante italiano perto do mercado de Spitalfields, onde partilhámos uma pizza e uma garrafa de vinho. Fiz questão de mostrar remorso pagando o jantar e levando a conversa para o lado dela, querendo saber todos os pormenores sobre as suas viagens, sobre o romancista inglês, sobre os planos do futuro. Não me recordo de uma única resposta e sou incapaz de reproduzir qualquer diálogo desse jantar: na minha cabeça desatava-se uma única ideia, obsessiva, concomitante com o demónio zombeteiro que então governava o meu espírito, que era a de levar Nina para a cama a qualquer custo. Comer, beber, fornicar: naquela noite de Verão, com os aromas a ferro e fuligem de Londres vagueando na brisa, esta tríade pareceu-me tão lógica e tão necessária como a tríade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Fomos a um bar perto de Barbican, onde bebemos outra garrafa de vinho, e então – porque se fazia tarde e nunca chegaria a tempo do último metropolitano – ofereci-lhe o meu sofá para dormir naquela noite.
Quando entrámos em casa, eu quis abrir uma terceira garrafa de vinho, mas Nina pediu-me que não o fizesse: tinha de acordar cedo e já bebera o suficiente. Foi então que me aproximei dela e, sem pedir licença ou hesitar, lhe agarrei a nuca e a beijei sofregamente. Nina não resistiu de imediato mas, ao final de alguns segundos, afastou-me suavemente.
«Olha, estamos bêbedos», disse ela, sorrindo. «Isto não é nada boa ideia.»
«Está bem», respondi, e tornei a puxar-lhe a cabeça para mim e a beijá-la.
A princípio Nina riu-se, achando graça àquela insistência inusitada. Voltou a tentar afastar-me quando eu continuei (pese embora os seus leves protestos) a beijar-lhe avidamente os lábios, o rosto, o pescoço; levantou o tom de voz quando, num frenesim de braços e mãos e de força bruta, comecei a tentar despi-la, tirando-lhe o casaco com um golpe de incrível destreza e desabotoando-lhe a camisa com dedos imparáveis, alguns botões saltando das costuras e aterrando suavemente na carpete. Nina lutou, arranhando-me o pescoço e o rosto, pedindo – suplicando – que eu parasse, que a deixasse sozinha; mas ela era uma mulher, uma mulher, e eu estava demasiado possuído pelas trevas para que as suas súplicas fizessem algum sentido. Até que, quando peguei nela com toda a força que tinha (abraçando-a por trás) e a empurrei na direcção do quarto, senti na lassidão do seu corpo que Nina tinha desistido de lutar; que sentia, tal como eu, que continuar a debater-se seria drástico, que a resistência acrescida teria consequências imprevisíveis, que eu só seria detido pela violência. Porque Nina nunca seria violenta, porque fechou os olhos e se submeteu e se rebaixou à minha luxúria, deitei-a na cama e aproveitei-me do seu corpo com a voracidade de um condenado à morte ou de um Judas que, depois da traição, consegue por milagre sentar-se à mesa do seu derradeiro repasto.
Depois de se vestir, em silêncio, Nina partiu a meio da noite sem olhar para trás. Deitado na cama, a olhar para a parede, ouvi a porta bater e soube que era definitivo: ela abandonara a minha vida naquele instante; tinha sido para sempre. A compreensão desta violência – ou a violência desta compreensão – nada fez para atenuar o sentimento de conquista que bradava dentro de mim. Conquistara a minha solidão, perdera-me em definitivo. Levantei-me, acendi um cigarro (a brasa iluminou brevemente a escuridão), fui até à sala, a lua de Verão ainda acesa do outro lado da janela. Sentei-me: à minha frente estava um homem em tudo idêntico a mim que me escutaria atentamente, também ele triste e melancólico, a cabeça repousada na palma da mão, o cotovelo apoiado no braço do sofá. Perguntou-me, sereno, se havia algum vestígio; tornei a erguer-me, regressei ao quarto, olhei para os lençóis, revolvi-os. Não havia nada, pensei: nenhum fio de cabelo, nenhum aroma, nenhum resquício de sangue.  

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