Salas de chuto
O Governo aprovou o novo Plano Nacional contra a Droga e as Toxicodependências. Esqueceu-se de analisar os fracassos do anterior plano, o qual tendo sido sujeito a uma avaliação externa por uma entidade independente escolhida pelo Governo - o Instituto Nacional de Administração - dava pano para mangas, se o objectivo fosse o de aperfeiçoar políticas públicas numa matéria particularmente complexa e de efeitos devastadores.
Mas não foi o caso. O acto sensato, e mesmo corajoso, de submeter um plano nacional a uma avaliação deste tipo requer sensatez e coragem até ao fim. Ou seja, assumir publicamente os erros, uma maçada. Até porque o relatório do INA apresentava alguns indicadores graves, tais como o aumento do consumo e do tráfico, por um lado, e a diminuição de primeiras consultas e de reinserções de toxicodependentes sujeitos a tratamento, por outro. Indicadores que terá sido melhor esquecer se nos lembrarmos que este plano assentava em duas "conquistas": a metadona e a descriminalização do consumo de drogas leves.
O novo plano assenta também noutra "conquista": a criação das chamadas salas de chuto. Um tema muito mais animado e mediático do que a análise das causas do fracasso neste combate desigual, o aprofundamento deste fenómeno que crucifixa gerações, atira para a rua milhares de homens e mulheres, enche os estabelecimentos prisionais, propaga doenças transmissíveis e sem cura, empurra para o abandono muitas crianças cujos pais perderam todas as competências parentais e consome, sem resultados visíveis, recursos significativos.
Aproveita-se um desconhecimento generalizado destes fenómenos, que se acantonaram nas fronteiras da Saúde e do Social, uma terra de ninguém, para sustentar posições que, não estando escoradas nem na ciência nem na experiência com segurança, oferecem contudo o atractivo próprio dos temas que sobram ao folclore ideológico, uma espécie de espuma das coisas.
Quem cuida de reflectir sobre, por exemplo, os seguintes aspectos:
- O pressuposto em que assenta esta proposta - ser a toxicodependência, actualmente em Portugal, a principal causa de infecção pelo VIH/sida - não se verifica segundo dados do Centro de Vigilância Epidemiológico das Doenças Transmissíveis que demonstram estarmos face a uma nova realidade epidemiológica desta doença. Sendo que, em qualquer caso, as salas de chuto não previnem a transmissão ou reinfecção por via sexual;
- Como medida de redução de risco, nenhum estudo é conclusivo quanto ao impacto na redução da toxicodependência problemática. Será, para já, apenas uma medida avulsa sanitarista de carácter paliativo;
- Está já calculado o número de pessoas que poderão ser assistidas por este programa? E que fazer com aqueles que o não possam integrar?
- Será que uma medida idêntica deve ser adoptada para a problemática do alcoolismo, tão forte no nosso país?
Etc., etc..., são muitas as questões que deveriam ser analisadas rigorosamente antes de assumir esta medida. O que parece não afligir ninguém, excepto os próprios toxicodependentes que sabem, por amarga experiência, que este caminho não conduz a uma luz ao fundo do túnel, mas condena a um túnel definitivamente sem luz.
Os decisores políticos, nestas matérias, são os "donos" dos destinatários, falam por eles, falam deles e, temo, raramente com eles.
As salas de chuto representam mais uma capitulação, de todos nós, face a esses e tantos "outros". Dá-se de barato que pouco ou nada se pode fazer por eles e entregam-se à sua circunstância, em vez de os tratar, reintegrar e devolver à vida, às suas capacidades e ao seu futuro.
Tentadoramente mais fácil, esta medida vistosa tem ainda a vantagem de se verem livres deles. Mas esta vantagem está camuflada pelas vestes da falsa compaixão e, por isso, não etiquetável de politicamente incorrecta. Fácil, indolor, invisível.
Desde o Admirável Mundo Novo, de Huxley, até ao New Age, passando pelo post-modernismo, as sociedades vão-se afogando no seu próprio modelo de individualismo libertário. Com a crescente complexidade dos problemas, a sua globalização, a fragmentação social, a perda de raízes e referências, as novas doenças, as desigualdades estratificadas, o aumento do abandono e da solidão, o desânimo generalizado, a depressão em cadeia, podemos dizer que a receita não provou. Hoje, os homens estão mais sós, mais vulneráveis, mais tristes e perdidos no seu interior. E se há coisa que este mundo admirável não previu foi tempo e paciência para cuidar deles. Daí ter-se vindo a especializar em medidas light, do tipo, "coitados, deixem-nos lá!". E é isso mesmo o que vamos fazer: pô-los e deixá-los lá.