Regresso
Há algo de desconcertante nisto de estar em Praga a reler Kundera, cliché saboroso que planeava desde os 16 anos. Em toda a cidade, e durante uma semana, não vejo uma só outra pessoa a ler um livro: nem locais nem turistas, nem jovens nem velhos, nem evidentes colecionadores de carimbos e souvenirs nem rapazes estilizados, com pose de artista e (imagino) declarações de marginalidade.
Vejo cartazes do último thriller de Jo Nesbø, isso vejo. Nas esquinas, no metro, nas montras - em todas as montras. O mais são os pauzinhos da selfie. Já ninguém fotografa coisas: fotografa-se nelas, para publicar no Facebook e iludir o facto de viajar só.
Vivemos o tempo da solidão plena, apesar da internet e das redes sociais e dos talent shows. O pauzinho da selfie é o retrato momentâneo desse tempo. Centenas de milhares de pessoas passeando-se numa das cidades mais celebradas da literatura sem que um só delas leia um livro, o seu retrato permanente.
Foram umas férias boas e curtas, como sempre são as férias boas. Os checos parecem falar mal inglês ("Thank you, mister!", "Thank you, mister!"), mas têm muitos cães. Os cães falam todos a mesma língua: a dos afectos. Faço festas a uns quantos, lustrosos e educados.
Mas só quando subo ao monte Petrín, esse mesmo onde Tomas mandou Tereza confrontar-se com o suicídio, me assalta a ideia de que podia, de facto, viver ali. Andamos por lá dois dias. Subimos e descemos, fazemos piqueniques com a silhueta da cidade em fundo e deitamo-nos a ver os roseirais e a ler. Não acaba, aquele parque.
No fim, é sempre o campo. E uma pergunta inquietante: se Lisboa tivesse um lugar daqueles, tê-la-íamos habitado mais tempo?
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico