De que falamos quando falamos de sexo? Há milhares de anos que a humanidade refaz a pergunta, revendo-se em muitas respostas paradoxais que vão do pudor à luxúria, do êxtase ao terror, embora nunca caindo no pecado da indiferença. Não surpreende, por isso, que o novo filme do inglês Michael Winterbottom, 9 Canções, surja envolvido numa nuvem de agitação mediática, aqui e ali tocada por um sobressalto de "indignação" ou mesmo por uma hipótese de "escândalo". A explicação para tamanho fervor reencontramo-la na palavra mais primitiva. Essa mesmo sexo.
E talvez seja inglório evocar qualquer forma de bom senso, por exemplo insistindo no óbvio que se trata apenas de um filme sobre a relação amorosa de dois jovens - Lisa (Margo Stilley) e Matt (Kieran O'Brien) - em cenários contemporâneos de Londres. E ainda mais obviamente que a dimensão sexual da sua relação é muito importante, a ponto de 9 Canções os encenar em várias situações de entrega, de grande intensidade física e de arrebatada partilha de prazer.
Não quero simplificar. E também não tenho a ingenuidade de pensar que 9 Canções possa ser um filme preguiçosamente consensual. É um facto que as representações da sexualidade dividem os cidadãos (podem mesmo ser reveladores de diferenças inconciliáveis) e qualquer espectador possui igual legitimidade para admirar ou menosprezar o filme de Winterbottom. Importa, no entanto, a meu ver, não aceitar essa lógica social que, sempre que surge um filme que dá a ver a actividade dos órgãos genitais do homem ou da mulher (neste caso, de um homem e uma mulher), obriga a relançar o debate sobre as fronteiras entre "erotismo" e "pornografia". Porquê? Porque esse debate, na sua miragem de uma pureza intocável, se faz sempre contra a mais simples percepção da dinâmica histórica em que vivem as imagens, em geral, e as imagens do sexo, em particular.
Lembremos, por isso, um dado também óbvio e que, importa reconhecê-lo, perturba as leis das nossas sociedades (isto é de todos nós). É um dado, antes do mais, de natureza iconográfica. Ou seja: a superabundância de imagens da sexualidade, ou com conotações sexuais, no nosso quotidiano. Essas imagens estão em todo o lado: da publicidade ao Big Brother, do cinema à televisão, da imprensa a essa galáxia sem centro, imensa e avassaladora, que é a Internet.
Daí que valha a pena sublinhar dois aspectos que podem ajudar a compreender o que é, e de onde vem, um objecto como 9 Canções. O primeiro é de natureza contextual o filme não reflecte nenhuma mudança na difusão das imagens de "sexo explícito", limitando-se a confirmar uma tendência que, em boa verdade, passou a ser dominante no nosso quotidiano cinematográfico, televisivo e informático. O segundo aspecto poderá definir-se como de natureza didáctica: nenhuma imagem se equivale a outra e mesmo (ou sobretudo) uma imagem da vida sexual não pode ser separada do contexto informativo, narrativo e simbólico em que surge inserida.
Qual é, então, o sexo que se filma em 9 Canções? É um sexo desencantadamente realista. Existe no interior de uma relação mais ou menos acidental e vulnerável, ansiosa de felicidade e assombrada pelo efémero, surgindo a paisagem da Antárctida (onde Matt trabalha) como simulacro da utopia em que já não é possível acreditar. Na prática, e se a sociologia não nos engana esta é uma relação em muitos pontos semelhante a tantas relações de tanta gente jovem (ou menos jovem) do nosso mundo angustiado de começo do século XXI. É esse, aliás, a meu ver, o maior mérito de Winterbottom: o de conseguir apanhar o "ar do tempo", filmando Lisa e Matt num tom de reportagem ficcionada (em vídeo digital), observando-os como personagens exemplares de uma época em que a descrença colectiva de valores gera uma radical, por vezes pueril, sede de absoluto nas relações mais privadas.
9 Canções recupera, afinal, a mais nobre e primitiva dimensão do melodrama. Ou seja a de uma aliança romanesca entre drama e música, sendo aqui a música (pop) o conjunto de canções que justificam o título. Lisa e Matt conhecem-se na Brixton Academy, em Londres, num concerto dos Black Rebel Motorcycle Club. A partir daí, as canções (dos Franz Ferdinand, Primal Scream, The Dandy Warhols, etc.) vão definindo uma textura de espectáculo e emoções que, por assim dizer, prolonga a intimidade do par sem, no entanto, lhes fornecer um "sentido" para a sua existência. Talvez seja essa, em última instância, a razão da comovente beleza do filme de Winterbottom: a de ser um exercício de exaltação do absoluto num mundo todos os instantes ferido pelo sentimento do precário. O que é que isso tem a ver com o sexo? Tudo.