Poesia

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Eu não sabia que ele era tanto bom - diz-me o Célio. E, de repente, todos eles se humanizam: o Célio e o Poeta Candeias, a sra. Filomena e a Sara, o Mário Gil e o Dário e o Rúben Paulo e até aquele irmão mais velho, que vivia em São Jorge e eu não conheci.

Não nos iludamos: na nossa pequena e bem-aventurada igreja evangélica baptista, que nos tornava uma ilha dentro de uma ilha, eles eram uma ilha dentro de uma ilha dentro de uma ilha. Negligenciávamo-los. Eram os pobres, os mais pobres e disfuncionais de todos, e eram também aqueles através dos quais ajustávamos contas com a nossa subalternidade.

Para mais, havia o Poeta Candeias. Era pai apenas dos dois mais novos. Todos os dias tomava um banho de três horas, esfregando cada refego, cada dedo. De quatro em quatro meses, vinha à igreja e levantava a mão, aceitando Jesus como seu salvador pessoal. E, sobretudo, escrevia uns poemas de que nós obrigávamos os filhos a envergonharem-se.

De todas as desgraças que se foram abatendo sobre aquela família - a sida que matou um, a heroína que atirou outro para a capa de uma revista, a morte da sra. Filomena -, nenhuma era tão humilhante como os poemas do Poeta Candeias. Chegámos a decorar alguns, só para nos sentirmos melhor na nossa própria pele.

Isto o nosso Deus nunca evitou.

O Poeta Candeias morreu há dias. Nos últimos anos, tornou-se uma figura de Angra. Participava em programas de rádio nocturnos, onde se tornou conhecido como Eremita do Atlântico.

Ontem, o Célio, um dos mais novos, viu-me na rua e travou a fundo.

- Aquilo é um disparate - disse-me. - Poemas, contos. Nem sei por onde começar. Tenho uma cama cheia. Uma cama de casal.

Vou ajudá-lo. Nada me comove mais do que um homem descobrir o seu pai. E, no caso do Célio, já é tragédia suficiente ser a título póstumo.

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