O grande arquitecto modernista festeja o seu centésimo aniversário no próximo dia 15. Na sua mente jovem, a idade conta pouco e a arquitectura é um trabalho como outro qualquer, "o que conta mesmo é o ser humano na sua fragilidade, é o sentimento de solidariedade pelo próximo que sofre, é rir e chorar".
Este ano completa 100 anos...
Não fale em idade. Eu tenho 60 anos. Tudo o que eu fazia com 60 anos, eu faço. Acho esse negócio de idade horrível. O que interessa é o presente, o trabalho, a vida.
É um homem de muitas facetas, poeta, escultor, político...
Quando falo do meu trabalho, o que mais me interessa é saber que guardei um tempo para pensar na vida, na sua fragilidade, na minha posição perante o mundo. A minha arquitectura não é o mais importante. O importante é a vida, a família, os amigos, esse mundo que a gente precisa modificar. Depois de uma certa idade a tendência é conciliar. Eu não critico os meus colegas, faço a minha arquitectura como bem entendo, modestamente. Acredito na intuição, quero fazer o que eu gosto sem influências.
A minha arquitectura atende à técnica e o betão armado exprime todas as possibilidades. Uma arquitectura universal seria monotonia. O importante é haver invenção. Na minha vida profissional conheci Le Corbusier, mas a única influência que tive dele foi no dia em que me disse que arquitectura é invenção.
Acusam-no de falta de funcionalidade nas suas obras. O que pesa mais quando está a projectar funcionalidade ou imaginação?
A função e a forma plástica nascem ao mesmo tempo. Por exemplo, os dois edifícios que projectei, a sede da Mondadori em Milão e a sede do PC em Paris, anos depois chamaram-me para encomendar novos projectos. Isso prova que conversa de funcionalidade é ridícula.
Como vê a arquitectura?
Eu acho que a arquitectura deve causar espanto, surpresa, a gente olhar um prédio e ter qualquer coisa de diferente chamando a atenção. Hoje em dia a gente tem o concreto armado que tudo permite, então se a gente quiser criar uma coisa mais leve, mais solta, mais diferente, pode criar. Mas acho que cada um deve seguir o seu desejo. Por exemplo esta construção que estou fazendo agora para Brasília tem um vão de 100 metros (pavilhão polivalente localizado junto do museu e da biblioteca), esta pala de concreto poderia cobrir um campo de futebol, ela vai cobrir 30 mil pessoas, será uma festa popular de grande envergadura. É bom poder criar esses ambi entes em que o povo se pode divertir um pouco.
Que obra lhe deu mais prazer criar ou é a actual que sempre lhe dá mais prazer?
Um dos meus primeiros trabalhos foi a igreja da Pampulha (S. Francisco de Assis, em Belo Horizonte). A igreja era diferente, era coberta de curvas, ela teve sucesso, ela ajudou o presidente JK a ter mais ânimo para fazer Brasília. Pampulha foi o início de Brasília, a mesma correria, a mesma paixão com o aspecto, com a coisa feita dentro do prazo. O presidente disse-me : "Oscar, nós fizemos Pampulha, agora vamos construir a capital." E aquela aventura começou, tudo longe de tudo, sem programa. Mas foi de qualquer forma um momento de optimismo do povo brasileiro, levou o progresso para o interior e me deu muito prazer.
Na Renascença os arquitectos daquela época faziam uma cúpula mas não faziam com mais de 40 metros. Em Brasília, com o betão armado, a cúpula do Congresso tem 80 metros, mas podia ter 100 ou até 200, e a arquitectura em alguns casos deve exprimir a técnica. Quando eu quero fazer um prédio diferente e o tema permite, eu reduzo os apoios, e a arquitectura surge mais audaciosa, e os espaços tornam-se mais generosos, e então permite uma forma diferente, uma forma nova, que cria surpresa.
A sede da Mondadori, em Milão, foi outra obra que eu gostei fazer. Na entrada, eu tinha que fazer uma colunata diferente. Então, em vez de mexer na coluna, eu criei espaços diferentes. De modo que quem chega no Palazzo Mondadori, tem uma surpresa porque nunca viu antes uma obra assim com uma colunata em que os espaços entre colunas são diferentes, uma coisa assim musical.
Que obras tem em mãos de momento?
Agora tenho umas obras que interessam. Estou a fazer um museu em Espanha, um teatro em Itália... eu ainda trabalho muito. Eu divido o meu trabalho em duas partes. Enquanto é criação, é comigo, e eu trabalho sozinho e faço o projecto. Arquitectura é uma coisa muito pessoal. Quando o projecto está pronto, eu dou a um amigo para de-senvolver. Assim eu divido o meu salário e me sinto mais à vontade.
Atravessou o século XX, conheceu várias realidades políticas, artísticas. Os anos de exílio foram ricos para a expansão da sua obra e os conhecimentos que efectuou.
Com o exílio, eu senti que ainda existe fraternidade, vontade de ajudar.
O meu primeiro contacto foi em França, o André Malraux, que conseguiu de De Gaulle a minha licença para trabalhar em França como arquitecto. Conheci Sartre, tínhamos uma forma de pensar parecida. O pessoal do PCF que me acolheu muito bem. Fiz a sede do PC e do jornal L'Humanité. Daí parti para a Argélia. Na altura era o presidente Boumedienne que estava no poder. Vivia-se a luta pela independência. Esse clima de euforia era bom para trabalhar.
Além do seu trabalho, o que acha que vai deixar para a posteridade?
Não acredito muito nessas coisas. O ser humano é frágil. A vida, também. Tudo se esquece. Eu não tenho essa preocupação. Acho que é bom quando a gente faz o que gosta.
Como se vê a si próprio? Uma personalidade marcante do século XX como Dalí, Picasso...
Não tenho essa imagem de mim, nem essa percepção. Jamais isso me passa pela cabeça. Eu quero é trabalhar, conversar, estar com os meus amigos, rir, saber que o tempo está correndo.
Você é uma pessoa pessimista?
Eu sou realista. Eu acho que o ser humano é insignificante de mais. Basta você e olhar para o céu para ver como nós somos pequeninos. Então o ser humano deve ser mais simples, mais cordial, ter prazer em ajudar os outros, saber que pouca coisa é importante, saber que a vida é um sopro. A gente chega conta a sua historinha e vai embora. Aqui no escritório, por exemplo, acho que a gente deve ser informada, nós queremos evitar o homem especialista, que só sabe dos assuntos da sua profissão. Deve saber de história da arquitectura mas também há cinco anos, todas as terças-feiras temos uma aula de filosofia, uma aula sobre o cosmos, para não sabermos as coisas pela rama, é preciso ter uma ideia da vida.
Com quase cem anos, sente-se desiludido com o ser humano?
Eu quero acreditar nas pessoas. Toda a gente tem um lado bom. Quero ser optimista, apesar da injustiça fantástica que existe. A gente tem que lutar para melhorar. Viver é difícil. O ser humano é bem dotado mas muito desprotegido. Acho que a vida não tem perspectiva, tudo acaba. Na verdade acho que a gente precisa de fantasia, pensar em coisas impossíveis, para poder lutar contra essa realidade como a poesia, essa linda de Manuel Alegre Trova do vento que passa que está sempre aí na minha estante.
Trabalhou com Le Corbusier, e este foi um marco na sua obra. Mas donde vêm as curvas: do relevo do Rio de Janeiro e das garotas cariocas?
O intelectual é uma imposição da técnica. Quando se tem um grande espaço para vencer, a curva é a solução ideal. Portanto, numa época de concreto armado, se eu pensar numa arquitectura muito disciplinada, de ângulos rectos, estou fugindo da realidade.
Como é que, sendo um não crente, consegue ter tanta sensibilidade para construir catedrais tão belas?
Eu fui criado por uma família católica. O meu nome devia ser Ribeiro de Almeida porque o avô com quem eu vivi a vida inteira era Ribeiro de Almeida. Na época, Niemeyer, um nome estrangeiro, prevaleceu. Eu lembro sempre do meu avô, família católica com retrato do Papa na parede. Depois que eu saí para a vida, achei a vida tão injusta, eu entrei para o Partido (PCB), onde encontrei as melhores pessoas que eu conheci, fraternais, querendo só mudar o mundo.
Eu respeito quem é crente, pois é difícil acreditar em qualquer coisa. Mas tem uma hora que a ciência é perversa, pois ela hoje explica tudo. Eu tenho amigos que são religiosos, eu tenho amigos reaccionários, eu evito a conversa, mas a gente tem de admitir que cada um deve pensar o que bem quer senão o mundo seria uma monotonia.
As suas obras em Portugal foram em certa medida uma frustração para si, pois pouco se concretizou.
Isso não é tão importante. Em Portugal agrada--me também a literatura de Saramago, Eça de Queirós (Os Maias). Eu li as cartas dele para a mulher, eu sei muita coisa da vida dele e quando esteve em França ele foi uma figura muito importante. Ele simpatizava com a burguesia, mas ele criticava a sociedade burguesa, era um escritor fantástico.
Gosto muito de Lisboa e das aldeias de Portugal. Sinto-me mais em casa do que no resto da Europa. E a arquitectura antiga brasileira é a que veio de lá para cá. Quando estou nas aldeias de Portugal, parece que estou no interior do Brasil - os mesmos telhados, as mesmas varandas, uma arquitectura horizontal tão bonita.
Precisa de muito tempo para conceber um projecto?
Depende. O Museu de Niterói (Museu de Arte Contemporânea) foi mais fácil. Existia o terreno, o mar em volta, precisava de um apoio central e surgiu a arquitectura à volta dele como uma flor.
Se quisesse, poderia ser milionário. Mas você tem uma relação peculiar com o dinheiro...
O meu avô Ribeiro de Almeida, com alguma influência na política, tinha um modelo muito próprio. Deixou para nós a casa em que morávamos hipotecada. De modo que essa ideia de desprezar dinheiro me acompanhou desde menino. Eu me lembro que a minha casa tinha conforto. Mas ele morreu sem um tostão. Eu às vezes gasto dinheiro, mas ajudo os outros.
Acha que os políticos brasileiros estão a fazer algo para mudar as injustiças no Brasil?
A primeira coisa é acabar com o capitalismo. Mas o nosso presidente é bom, é do meio operário. A origem dele aproxima ele mais do povo. Nós queremos uma sociedade de homens iguais onde as evidências não são tão importantes.
O Presidente Lula tem tido problemas com o seu Governo. Houve casos de corrupção no Governo de Lula...
Ele tem, mas ele é operário e está do lado do povo. O povo gosta dele. Eu apoio ele. A gente tem que ter um presidente que seja um lutador, que defenda a Amazónia, que lute contra a pobreza e a violência, que tanto fazem sofrer o Brasil. A pressão americana, o FMI, e isso tudo pisando na América Latina.. É preciso a noite para aparecer o dia. Quando era militante do partido, lutei muito e tive sempre presente a luta política. Mas hoje não acredito mais na revolução por meio das leis. Os nossos presidentes, todos eles, uns bons, outros ruins, nunca deixaram uma faixa para a esquerda caminhar. Lula é um operário, conhece a realidade.
Quando o país se degrada e a esperança sai do coração dos homens, só resta a revolução.
Acredita ainda na ideologia socialista, na luta de classes?
Acredito na revolução. Há assuntos que você não pode tratar porque parece que está fora da verdade. O Estaline ficou 14 anos vivendo na Sibéria. Ele preparou a indústria pesada na União Soviética, contra a opinião dos outros, ele preparou a União Soviética para a guerra, ele ajudou Mao e apoiou a revolução na Espanha. O socialismo está dentro do coração das pessoas e não acaba de um dia para o outro. A revolução na União Soviética talvez tenha sido um acidente de percurso. O que é justo é um Estado correcto, amando o povo, procurando criar um clima normal de felicidade geral.
O que aconteceu em Cuba foi uma coisa heróica. A luta pela soberania do país. Um pequeno grupo que se reuniu, resolveu fazer a revolução, foi para a montanha e essa coisa assim romântica ficou no coração do povo cubano.
De modo que Cuba é o caminho de uma experiência de comunismo glorioso. A miséria é grande de mais para ser contida.