Mulheres
A primeira vez foi há uns meses. Estava a Zélia no corredor, a passar roupa, quando o sino da igreja tocou.
- Ah, coitada - suspirou -, lá se foi a Tia Maria X.
Há dias, a cena repetiu-se. Cantarolava ela algures quando, de súbito, fez silêncio. Lá em baixo, o sino concluiu as badaladas.
- Poça, o ti João Y não se aguentou...
Fui encostar-me à ombreira da porta.
- Mas como é que tu sabes quem morreu, Zélia?!
Ela meneou a cabeça.
- Ora, sei mais ou menos quem está doente. Se tocar três vezes, é homem. Se tocar só duas, é mulher.
E, perante o meu ar desconcertado, aproveitou:
- A gente, mulheres, somos umas tristes até no sino...
Pensei nas cabalísticas dos números, o dois e o três. Na ideia de dualidade e na síntese hegeliana. Nas duas mãos de um corpo e nos três poderes de um Estado. Nos dois filhos de Isaque, nos três mosqueteiros e também nos três porquinhos.
Olhasse por onde o olhasse, só via exclusão. Havia algo de amputado no modo como a Igreja, e uma paróquia rural em particular, via a mulher. Algo de interrompido. Se três é a conta que Deus fez, uma mulher, ao morrer, está desde logo mais longe do Paraíso.
Imaginei um velho de barbas, numa nuvem, aguçando o ouvido:
- Aquilo foram duas ou três badaladas, Pedro? Olha que, se foram três, temos de preparar aposento...
Depois lembrei-me do protesto da Zélia. Se a mulher objecta, talvez não estejamos tão mal assim. Está ao corrente e indigna-se.
Aliás, não é isto, praticamente, um matriarcado? Sim: leoa, nos Açores, só o homem. O alfa é a mulher, que apenas intervém se for preciso.
Portanto, o homem leva três tempos, como na valsa, porque é um pobre romântico. A mulher leva dois, como no samba, porque num instante sai dançando.
- Coitados dos homens - disse para mim mesmo.
E, assim que o disse, pude ir dormir descansado.