Montanha
Há uns anos, passei um réveillon em Marvão. Fazia frio, a vila continuava linda e em toda a volta espalhava-se a planície do Alto Alentejo, desolada e romântica como mais nenhuma no Inverno.
Foi um ano bom, esse que começou assim.
Ao final do dia 31, as mulheres remeteram-se às suas cozinhas, preparando a ceia, e os homens reuniram-se à volta de um tronco de madeira. Largaram-lhe fogo e ficaram ali, em silêncio, a vê-lo arder.
Tinham postos os seus bonés e os seus casacos domingueiros. O tronco ardeu durante horas. Não arredaram pé.
Esfregavam as mãos uma na outra, quando sentiam algum golpe de vento. Trocavam olhares quando um fazia um intervalo para desentorpecer as pernas ou outro chegava arrastando um tio velho que se atrasara.
Ali continuaram.
Havia um cheiro doce a madeira queimada. Uma crepitação ao de leve, que se fundia com a brisa fria de sul - e, no resto, um silêncio.
Era como se todo o mundo tivesse feito silêncio para ver arder aquele tronco. Como se todo o Alentejo se alumiasse agora à luz trémula daquela fogueira.
Pensei no ano que findava. Nos erros que cometera. Nas vezes que escapara à morte. Nos momentos em que me suplantara e se estava de facto mais perto de fazer alguma coisa da minha vida.
Nas pessoas que tinham deixado de rodear-me, nas que me rodeavam agora e nas que me rodeavam naquele instante preciso, pensando também.
Não me lembro de ter conhecido um silêncio tão belo como o daquela noite, enquanto um tronco de madeira se reduzia a cinzas e, depois disso, a quase nada. Nunca mais encontrei um silêncio como aquele, no meio daqueles homens que pensavam.
Preza-se pouco o silêncio colectivo, neste lugar onde vivo agora. É talvez o maior dos seus defeitos: o silêncio fere. Felizmente, existe a montanha.