Medo

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Tal como a esmagadora maioria dos portugueses, não faço ideia se as sentenças do caso Casa Pia foram justas ou injustas. O mesmo podia dizer de qualquer processo judicial que por acaso tenha chegado ao fim no mesmo dia em que foi lida a deliberação dos juízes sobre este malfadado processo.

O que sei é que não confio na justiça portuguesa e este sentimento, que com certeza partilho com milhões de portugueses, destrói os mais básicos direitos que todo o cidadão deve ter numa democracia: o direito à segurança, o direito a um julgamento livre e imparcial, ao religioso cumprimento de todas as garantias processuais.

Um dos aspectos distintivos entre uma democracia e uma ditadura é a arbitrariedade. Os direitos, mesmo que instituídos, estão à mercê de quem exerce o poder executivo - não cabe aqui a análise da forma como a lei nasce.

Numa democracia existe a garantia de que a lei é cumprida exactamente como está enunciada e aos tribunais cabe garantir que ela é escrupulosamente respeitada - como é normal existe sempre a possibilidade do erro, mas com esse teremos sempre de conviver. Simplesmente, esta garantia não passa, muitas das vezes, duma percepção. Como é evidente, até mesmo nos casos judiciais em que estamos envolvidos, nós, ignorantes em matérias jurídicas, não temos a certeza de que foi feita justiça ou não.

O caso da justiça não é, por exemplo, como a segurança. Ouvimos muitas vezes que há um clima de insegurança provocado por um suposto aumento da criminalidade. Depois podemos ser informados pelos mais variados institutos públicos e privados, nacionais e internacionais que a percepção não corresponde à realidade.

Na justiça não é assim. Não há nenhum órgão que nos diga se os tribunais e demais operadores judiciais estão a cumprir bem o seu papel ou não. O que existe é um processo lento em que a soma das nossas experiências pessoais e do nosso conhecimento de outras situações vai aumentando ou diminuindo a nossa confiança.

Há quem diga que a percepção de que a nossa justiça não funciona tem origem nos circos mediáticos que rodearam e rodeiam processos como o da Casa Pia, Freeport e muitos outros. No fundo, a acusação tem por base uma acusação, infelizmente demasiadas vezes justa, de que há jornalistas e órgãos de comunicação que adulteram os factos em função de determinados interesses e que assim sendo criam as condições para que não respeitemos decisões dos tribunais.

Não se nega o possível enviesamento que muitos autênticos julgamentos na praça pública provocam. Mas, pondo nos pratos da balança o mal que por vezes os media provocam e a correcta divulgação dos vários problemas dos nossos tribunais, é muito provável que o saldo seja positivo.

Ainda esta semana soubemos, pelos jornais, que dezenas de milhares de processos de execução fiscal prescreveram, mas não seria preciso ler este tipo de notícias.

Não há um português que não tenha uma história sua ou dum compatriota que revele o estado a que a nossa justiça chegou: o empresário que faliu porque ficou anos à espera de que uma dívida fosse executada, o cidadão que fez uma queixa por ter sido assaltado e que passados cinco anos não vê o ladrão julgado, o senhorio que leva anos para ver o inquilino que não paga a renda despejado.

Ao ouvir a sentença do caso Casa Pia fiquei arrepiado. A possibilidade de ver negada justiça a quem foi vítima de tão hediondos crimes, como as crianças e rapazes que viram as suas vidas destruídas, é tão chocante como a possibilidade daqueles homens, ou alguns deles, terem sido condenados sem que de facto tenham praticado aquelas infâmias.

Repito, não sei se os arguidos são culpados ou inocentes, mas não consigo respeitar o sistema que condenou aqueles homens, e enquanto não voltarmos a ter confiança na justiça não vivemos de facto num Estado de direito.

Quer se queira quer não, o maior desafio que se coloca à nossa democracia é resolver os problemas da nossa justiça. Todos os outros, por muito graves que sejam, são secundários.

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