No final de 2004, e em nome da justiça tributária em tempos de crise, o então ministro das Finanças, Bagão Félix, retirou aos autores, artistas e criadores os benefícios fiscais no IRS. Obrigando-os também a pagar impostos sobre as doações que fazem, ao abrigo da Lei do Mecenato, a museus e instituições do Estado ou para fins beneficentes. Inconformados com o que consideram ser uma situação absurda, os lesados apelaram a várias instâncias e membros do Governo, incluindo o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Sem êxito. Pelo que estas serão duas das questões que a direcção da Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA) debaterá, quarta-feira, numa reunião com o secretário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho.
Segundo uma carta a que o DN teve acesso, enviada a 25 de Maio à ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, a SNBA quer "reformas que inviabilizem as interpretações redutoras e discricionárias da Lei". Pedindo para debater em audiência os "critérios de avaliação do trabalho dos artistas plásticos para efeitos de benefícios fiscais, nomeadamente no que se refere a deslocações e à utilização de novas tecnologias"; a regulamentação da Lei do Mecenato e os "critérios de avaliação que presidem a doações de obras de arte pelos mecenas e pelos próprios autores"; o não cumprimento de um despacho de 1982 que determina a afectação de uma percentagem (até 0,7%) sobre os custos de construção para inclusão, em edifícios e espaços públicos, de obras de arte; e os efeitos negativos da Carta para a Europa da Cultura na circulação da arte contemporânea (ver texto ao lado).
os benefícios. "Durante a campanha eleitoral, o primeiro-ministro, José Sócrate,s concordou em repor os benefícios [de propriedade intelectual] aos autores. E isto enquadra-se no projecto do choque tecnológico e livre criação, porque os autores estão à frente em muitas coisas", conta ao DN o artista plástico José de Guimarães. Denunciando haver "artistas reputados que voltaram a ter outras actividades porque não conseguem sobreviver só com a sua produção".
Durante o Governo de Cavaco Silva, em 1989, "foram dados aos autores benefícios fiscais de 50% da matéria colectável [sobre valor total da obra]", recorda este membro da SNBA. "Se ganhavam 100 declaravam tudo mas pagavam sobre 50, porque uma actividade como a nossa é sazonal, criativa, envolve investigação, pesquisa, viagens, e precisamos de um pequeno fundo de maneio - na universidade chamam-lhe ano sabático."
Com o artigo 56.º na Lei 55-B de Dezembro de 2004, "ficámos reduzidos a um limite de 27 194 euros, e a partir daqui tudo se paga por inteiro", acrescenta. Reconhecendo que a lei "é extremamente democrática porque abrange a totalidade das pessoas", o artista fala de um "prejuízo enorme, porque o Estado português, ao contrário de Espanha, França, Holanda ou Alemanha, não adquire obras ".
contra e a favor. "É completamente absurdo! A possibilidade de beneficiar de 50% só favorece autores ou pintores se o rendimento for elevado. E se for elevado não pode haver benefício", afirma ao DN o fiscalista Saldanha Sanches. "Isso permite abusos imensos, como por exemplo transformar rendimentos laborais normais em rendimentos autorais. Sou absolutamente contra. Há casos de muitos abusos, como a história de fazer um programa de televisão e reclamar o direito de autor", argumenta. "É uma lei que está muito mal redigida, [porque] está aberta. Não têm razão nenhuma. O que é que têm a mais do que os outros trabalhadores?", questiona o especialista.
Feitas as contas, "ficam excluídos dos benefícios fiscais os autores que auferem anualmente mais de 54 mil euros", diz ao DN José Jorge Letria, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) - entidade que, na altura, se reuniu com Bagão Félix, grupos parlamentares e Comissão de Educação, Ciência e Cultura (à qual a SNBA também enviou cartas).
"É inaceitável qualquer mexida nos benefícios fiscais dos autores, num país onde são tão pouco protegidos. Porque os seus rendimentos não se podem dar como certos, como os dos gestores públicos", salienta o escritor. E dá como exemplo o caso dos realizadores de cinema, que podem passar cinco ou seis anos sem filmar e sem receber.
José Jorge Letria aponta a sazonalidade, a pirataria (sobretudo musical), a indefinição do estatuto de autor e a precariedade em termos de segurança social como factores que afectam todos os criadores. "Na Irlanda, o incentivo à criação é enorme, não há colecta fiscal sobre os direitos de autor dos escritores", diz. Em Portugal, lamenta, Estado e autarquias não entendem o potencial da cultura para gerar emprego e riqueza. "Só serve como flor para pôr na lapela e ir à festa."
"Não se pense que isto pode ajudar a reduzir a dívida pública. Os ganhos para os cofres das Finanças são de um milhão e tal de euros, e o próprio Bagão Félix reconhecia que não era uma verba significativa", argumenta Letria.
Por isso, a SPA vai propor à ministra da Cultura - numa reunião pedida há um mês e meio, ainda por agendar - que, "se se mantiverem estas reduções, se encontrem contrapartidas como um grau de dedução na ordem dos 100% para aquisições de material ou acções de formação". No mesmo encontro, esta entidade com 22 mil associados (o próprio secretário de Estado da Cultura é cooperador da SPA) quer abordar temas como a protecção da língua portuguesa no teatro e televisão e o incumprimento da Lei da Rádio de 1981.
os donativos. Para José de Guimarães, a questão das doações "é surreal". "Pedem aos artistas para oferecerem obras, ao abrigo da Lei do Mecenato. Há um valor de mercado, acordado entre o artista e quem recebe, e isso produz um abatimento no IRS de 25% desse valor", majorado em 20%. Como explicou a SBNA numa carta de Setembro de 2004 enviada a Santana Lopes, se o valor fixado for 1000 euros, considera-se que vale 1200; o montante dedutível à colecta é de 300 euros (os tais 25%).
Por despacho do subdirector- -geral dos Impostos, a administração fiscal considera, segundo o artista plástico, "que quando se oferece um desenho no valor de 200 contos, só oferecemos uma folha de papel. 'Se diz que vale 200, isso acresce ao seu rendimento'. Resumindo, nunca mais ninguém deu nada." A própria SNBA, aliás, aconselhou os sócios a suspenderem os donativos. "Não havendo normas, tratam-nos como se fossemos uma empresa. É um disparate", acusa o artista, que já avançou para os tribunais (ver caixa).
"Se fazem uma doação de um quadro ao museu, recebem zero e pagam zero. Só se houver aí negócio... Isso não pode dar origem a tributação. [O valor declarado] é irrelevante. Acho essa história muito esquisita", contrapõe ao DN o fiscalista Saldanha Sanches.
Quem perde, lembra José de Guimarães, são os museus nacionais. "Temos notado algum decréscimo nas doações feitas por artistas contemporâneos", reconhece o presidente do IPM - Instituto Português de Museus, Manuel Bairrão Oleiro, "sensibilizado" com o descontentamento dos artistas. "Os exemplos [dados numa reunião que teve] eram muito elucidativos de um tratamento um pouco desadequado à criação", mas esta é uma matéria "complexa" que necessita da intervenção conjunta de vários ministérios."