Instabilidade
Há dias foi uma fábrica de papel. Antes tinha sido uma de móveis. Pelo meio, o Governo prestou-se a fazer de relações públicas da Microsoft. Tudo embrulhado num pacote propagandístico cujo profissionalismo causaria inveja aos funcionários do defunto SNI. O Governo bem usa a publicidade para mostrar um país risonho e unido na prossecução dos "desígnios nacionais", o maior deles o "desenvolvimento". Mas tudo isto serve apenas para esconder uma triste realidade conflitual, que não vai desaparecer enquanto o(s) Governo(s) não fizer(em) certas coisas. Mais exactamente, enquanto não abandonarem o dogma do Estado-Providência.
O Estado-Providência apareceu, historicamente, para viabilizar sociedades onde a base era a propriedade e a iniciativa privadas. Procurando manter a adesão ao sistema daquela parte da população de rendimentos mais baixos, o sistema aceitava um certo grau de expropriação e redistribuição através da fiscalidade e dos programas sociais. Desta forma, o Estado-Providência compensaria a tensão e a instabilidade das relações entre o "capital" e o "trabalho". O Estado-Providência começou tímido, mas, sobretudo a partir dos anos 60 do século XX, expandiu-se desmesuradamente. À sombra da prosperidade do pós--guerra, tudo pareceu possível. O rápido crescimento económico e um quadro demográfico favorável (com muitos jovens e poucos pensionistas e desempregados) sugeriam que nada impedia continuar na senda da prosperidade económica com elevada redistribuição. Só que, neste processo, os sistemas políticos onde vigora o Estado-Providência foram-se transformando. Em vez de agências oferecendo as condições institucionais básicas sobre as quais os cidadãos prosseguem os seus objectivos sociais e económicos, os governos passaram a ser agências de colecta de impostos, criação de emprego e distribuição de rendimentos. Hoje, na maior parte dos países europeus, o Estado processa cerca de metade da riqueza criada e é a fonte de rendimento de cerca de metade da população. Isto trouxe uma mudança essencial no comportamento económico dos indivíduos. Eles (ou, pelo menos, uma grande parte) já não procuram resolver os seus problemas económicos e sociais através da busca de emprego, da qualificação e do esforço laboral, numa competição saudável com os seus concidadãos, mas através de uma participação sistemática no processo político. O seu bem-estar não depende já do seu esforço económico, mas da capacidade de pressão sobre o Governo.
Daqui resultou que os Estados democráticos europeus se foram deixando capturar cada vez mais por grupos de interesses directamente dependentes da capacidade de distribuição do poder político. Por esta razão, as maiorias democráticas europeias são cada vez mais constituídas por colecções desses pequenos (e grandes) grupos, e não numa base essencialmente ideológica, o que lhes dá aquele ar vagamente niilista de que tanta gente se queixa. Um político que queira ser eleito procurará sobretudo reunir o maior número possível daqueles grupos, de forma a constituir uma massa crítica de votantes. E a melhor maneira de os reunir é satisfazer (ou pelo menos prometer satisfazer) os seus desejos respectivos. Daí o aspecto tantas vezes desgarrado que parecem assumir as medidas tomadas pelos governos democráticos. Na tentativa de desmantelar uma série de mecanismos próprios do nosso modelo social, o actual Governo revelou a extensão dessas circunstâncias particulares. Funcionários públicos em geral, polícias, juízes, militares, professores, médicos, enfermeiros, tanta e tanta gente vive inserida nos mais diversos "subsistemas" e nas mais diversas excepções às regras gerais de funcionamento institucional.
A verdade é que isto vai funcionando enquanto as coisas correm mais ou menos bem. Mas quando começam a correr mal, o seu potencial destrutivo é enorme. Um pouco como uma bicicleta: quanto maior a velocidade, maior o equilíbrio, quando começa a abrandar, o colapso é inevitável. Eis, exactamente, o que se vai passando na Europa de hoje. As economias abrandam e a tendência para o colapso acentua-se. Como o Estado se encontra capturado pelos tais grupos que não imaginam mais nada senão reivindicar, o Estado-Providência, nascido para estabilizar, muito pelo contrário agrava a instabilidade. É simples: o esforço dos indivíduos já não é direccionado para aumentar a fatia aumentando o bolo, mas para aumentá-la através do roubo (pela reivindicação e a chantagem) de partes da fatia dos seus concidadãos.
Há, portanto, uma miopia dos defensores do Estado-Providência tal como hoje existe na Europa: eles continuam a achar que o dito Estado é uma condição de justiça e estabilidade social, quando na realidade é um dos elementos explicativos do abrandamento económico (um Estado semi-socialista é apenas um pouco mais eficiente do que um Estado plenamente socialista), e um instrumento de criação de situações de injustiça e instabilidade. Em Itália, na Alemanha, em França ou em Portugal começamos cada vez mais a ver os sinais desta ingovernabilidade. Resta saber até onde ela nos conduzirá.