HIP-HOP

Juntam-se nas ruas para dançar. Defendem a sua <i>crew </i>com unhas e dentes. Batalham entre si, mas a sua única arma é a dança. Entre no mundo e na cultura dos <i>b-boys</i> e das <i>b-girls </i>nacionais e conheça os ideais que os fazem mover. E reagir!<br /><br />
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Final da década de 1970. Nova Iorque. Numa rua despovoada, um grupo de jovens mostrava o que valia. Um contra um, os b-boys defrontavam-se através do breaking, uma forma de expressão artística na qual participavam gratuitamente. Nasciam as batalhas de rua, batalhas sem luta corpo a corpo, sem armas. Apenas dança.
2010. Lisboa ou Porto. Qualquer rua, centro comercial, gare de comboios, serve. Os movimentos estão lá. São os mesmos. O sentimento e a alma também. Mais de trinta anos depois, o hip-hop está vivo, em todos os cantos do mundo. Mas continua  a ser malvisto pelas massas.
Por todo o país, as crews, grupos de seguidores desta cultura urbana, continuam a coexistir. Enfrentam-se em competições, batalham nas ruas, dizem-se amigos ou conhecidos, falam em respeito mútuo, mas são na verdade rivais. Sempre o serão. Rivalidades que se resolvem numa roda e apenas com um rádio.
«Entre as crews há sempre uma relação de competição, sobretudo. Quando nascem é muito uma coisa de bairro, de pessoas que cresceram juntas. A dança é uma forma de vida que se partilha. As rivalidades surgem naqueles momentos de battles ou então são atritos prolongados e quase se ampliam para todo o grupo», diz à nm Piny, membro dos Jukebox, crew que nasceu há dois anos e meio, na Grande Lisboa.
«Os Jukebox surgiram da necessidade de criar algo que não havia em Lisboa, uma plataforma para bailarinos de freestyle que participassem em battles e que tivessem amor pelo palco e pela dança. Nasceram para unir vários e bons bailarinos que estavam separados pela cidade», acrescenta Vasco, o porta-voz do grupo.
Mas por toda a cidade outras crews foram nascendo nos últimos dez anos. Os 12 Macacos, In Motion, Beatmonkeyz, Natural Skils, Butterfliesoulflow, são algumas delas. A norte, surgiam os Momentum, os Gaiolin, Zoo Gang. Escondidas nos seus bairros, ou a treinar nas ruas, ou em escolas de dança que apoiam alguns bailarinos, preparam-se ao longo do ano para competições ou actuações individuais.
«Como crew estamos numa fase com ensaios mais regulares. Depende dos trabalhos que temos. Quando há um trabalho marcado, começamos a treinar de forma mais exaustiva, não há horas estabelecidas», diz Mary B. Tem 22 anos, estuda Medicina Chinesa e é uma das bailarinas dos Jukebox. A arquitecta de 29 anos, Piny, acrescenta: «Mas este é também um trabalho muito individual. Dentro do hip-hop, a vertente principal é o freestyle, que parte do trabalho de cada um.»

Somos todos irmãos
Apesar de o hip-hop ser uma cultura cada vez mais vista, o movimento de nascimento de crews parece ter parado. «Cada vez há menos. Há poucas pessoas a trabalhar para isso. Porque, na verdade, ninguém vai ficar rico a fazer battles. Por exemplo, há uma batalha no Porto. Só para ir e vir cada pessoa gasta pelo menos oitenta euros», confessa Márcio Salvador, mais conhecido por Ratinho. Faz parte dos Beatmonkeyz há cerca de um ano, mas foi através do programa Achas Que Sabes Dançar? que ficou conhecido.
Márcio sabe que essa fama é temporária, e confessa que a aproveita para promover todo o trabalho da sua crew. Hoje, é Tarik Chand, outro dos membros desta família, que beneficia desse chamado «estrelato». Faz parte do elenco dos Morangos com Açúcar, além de estar no curso de Ciências da Comunicação. «Nós já dançávamos antes de qualquer programa. Mas é uma forma de nos promover. Traz visibilidade noutras áreas», adianta Tarik, de 21 anos.
Nos Beatmonkeyz, o seu papel é mais de coreógrafo. Márcio prefere a batalha, tal como Tiago, Shark, 21 anos, aluno do último ano de Engenharia Mecânica. «É mais seguro para o meu futuro, e também me vai deixar tempo para a dança», diz, enquanto o seu irmão João (Johnny), o bebé da crew, com apenas 17 anos, se mantém calado, tentando fugir às perguntas. «Estou a estudar Mecatrónica. Danço há seis anos...», responde sem se alongar. Shark ajuda e acrescenta: «O meu irmão devia aproveitar. Ele faz b-boying sem nunca lhe terem ensinado.»
A crew é isso mesmo. Defender a família, seja ela de sangue ou não. «O hip-hop é uma cultura. Somos todos diferentes. Eu sou angolano, o Tarik tem raízes indianas. O Shark e o Johnny são europeus. O nosso convivo é multicultural. A dança faz que nos entendamos. Hoje consigo compreender o Ramadão. A dança é mais do que estilo. Não é uma moda, não é pelo dinheiro que dançamos, mas sim porque gostamos. Os Beatmonkeyz são mais do que dança, mais do que uma crew. São irmãos, filhos de mães diferentes. Nascidos para fazer isso, dançar», explica Ratinho.
E é essa confiança que transparece no momento da batalha. «Primeiro vem a adrenalina, o medo. Depois é só deixares o teu corpo ir atrás da música», explica Shark. E Márcio completa: «Naquele momento, és tu e mais ninguém. Não há cá tempo para pedir ajuda. Quando dançamos a pares tens de encontrar o equilíbrio com o teu par. Têm de se enquadrar em termos de espírito. Se um for abaixo o outro tem de estar forte. Eu para batalhar com alguém, tenho de sentir confiança. Não batalho com um desconhecido, pode ser o melhor bailarino do mundo, mas se não o conheço não batalho. Tem de haver confiança. Neste momento, só vou à batalha com o Shark.»

O que mais conta é o grupo
A entrada numa crew depende de muitos factores, mas nunca de dinheiro. «Não pago uma mensalidade para fazer parte da minha crew», dizia Márcio no momento em que foi eliminado do programa de dança da SIC. «Nós não fazemos audições. Só se entra nos Beatmonkeyz por convite ou porque essa pessoa convive connosco», explica, criticando quem segue a dança «à procura» de estilo. «Há miúdos que frequentam as aulas de hip-hop e fazem um frete. Os pais estão a gastar dinheiro. Eu para estar com os Beatmonkeyz gasto o meu tempo, a minha vida. Agora, não estejam num sítio só para dizer que fazem parte de um núcleo», critica Márcio.
Também para se ser um dos 12 Macacos é preciso fazer parte desta família. A crew nasceu em 2002 e é das mais antigas a juntar as quatro vertentes do hip-hop. Neste grupo há DJ, MC, writers e claro b-boys. Mas não só. Entre os 12 Macacos há ainda tatuadores.
Atsok (Nuno Costa) faz parte da crew há seis anos, como writer. «Lembro-me de ir a uma battle na casa amarela, em Almada, uma cena mesmo underground, onde conheci mais b-boys e o resto do grupo. No início era apenas seguidor, onde quer que estivessem lá ia eu apoiar 12M...», conta.
Já faz graffiti desde 1997, mas também não se fica atrás como b-boy. Para Atsok uma crew é uma familia, «sem segredos». «Estamos sempre preparados para ajudar, somos os primeiros a intervir, ajudar, apoiar, tudo», diz.
Quando entrou para esta crew foi uma decisão unânime. «Quando alguém quer entrar, a anuência é de todos. Se um não está de acordo falamos», explica Alex, com o sotaque francês que o caracteriza. Chegou a Portugal em 2004 e foi recebido pela crew. Agora é b-boy reformado, com 31 anos, mas está à frente do grupo.
Hoje os 12 Macacos são, afinal, mais de uma dúzia. «Na altura nasceu de uma battle, em que se juntaram grupos do Barreiro e Lisboa. Eram várias crews e era preciso inventar um nome. Eram 12 elementos e "macacos" surgiu por associação ao termo selva», explica Abóbora, músico, tatuador e writer de 25 anos. Hoje, o número de membros deu a volta e contam-se já 21 nesta família que a 4 de Dezembro celebra oito anos numa festa no Santiago Alquimista.
Para os 12 Macacos, as battles são algo habitual. Ou marcam entre si ou convidam outros bailarinos. Em competições confessam que os seus grandes rivais são os Momentum, crew do Porto, com quem gostavam de batalhar em breve. «Já perdemos com eles três vezes, e nunca houve um confronto oficial», lança Alex, em forma de desafio.

Competições internacionais
A crew do Norte nasceu em Outubro de 2003. «Momentum deriva do latim "Movimento que começa e não tem fim, movimento continuo», e foi-nos dado a conhecer pelo b-boy Kujo quando esteve em Portugal em 2003. O Mix e eu iniciámos a crew baseada numa amizade pura sem grandes pretensões e gostámos do nome», explica Max, um dos membros fundadores. Hoje são nove os elementos da crew com um dos currículos mais invejados, por exemplo, com vitórias recentes em Salamanca, Luxemburgo ou Bordéus.
Como rivais, os Momentum elegem crews internacionais. «Os Rivers Crew, pois há uma vitoria para cada lado [risos] e temos algumas coisas para deixar claras com várias crews mundiais e falo somente em b-boying. Em Espanha e França tivemos algumas derrotas que nos estão atravessadas e queremos testar-nos de novo», diz Max.
Mas as rivalidades vão mais longe: «A nível individual e pessoal somos rivais de nós mesmos, estamos sempre a testar-nos e a tentar superar-nos a cada instante, isso sim, torna-se complicado e frustrante muitas vezes... Nunca conseguimos chegar onde queremos... essa busca incessante pela perfeição é a nossa maior rival, mais do que qualquer crew!»
Os Momentum já batalharam «em vários call outs de rua». «As batalhas acontecem a qualquer hora em qualquer lugar, rua, centro comercial, casa, porta do trabalho, escola. B-boying pode dançar-se em qualquer lado e uma battle pode surgir a qualquer momento, entre amigos, inimigos, conhecidos... Bastam dois b-boys e mais nada», diz Max.
É também a norte que se realizam as mais conhecidas e conceituadas competições de b-boying, com a Eurobattle, organizada pelos Momentum. Outras como a Can You Smoke da Queen, a Red Bull i-Battle ou o Seixal Graffiti vão surgindo mais a sul.
Este ano, o Sweet Playground chegou mesmo a levar o hip-hop ao Casino de Lisboa. Tratava-se de um concurso de dança allstyles, organizada pelo Sweet - conceito de R&B e hip-hop que este Verão passou pela Kapital - onde seis crews competiam pelo primeiro lugar. Participaram cerca de 24 bailarinos e a avaliá-los estavam professores de dança.
«A ideia surgiu como consequência normal do Sweet que já albergava vários b-boys na pista de dança. «Decidimos fazer um evento dedicado especialmente a eles e à dança», explica o DJ Kamala (João Fernandes), fundador do conceito.
O Casino de Lisboa recebeu por duas vezes - uma delas a final - esta competição. «Não foi fácil. Até o público teve de se adaptar! No casino existem regras de indumentária que têm de ser cumpridas. Os chapéus são proibidos, por exemplo. Mas quando os responsáveis do casino perceberam o potencial da iniciativa e o público e participantes viram o potencial do espaço, criou-se uma harmonia que possibilitou levar a bom porto a nossa colaboração», diz.
Encher o Casino de Lisboa duas vezes com bailarinos de fato de treino, boné e mochilas deixou quem lá ia de boca aberta. Mas a admiração foi maior quando os viram dançar. «As massas fora da comunidade aperceberam-se do que eram as battles. Quem ia ao casino e nunca tinha ouvido falar em crews estava de repente a vê-las competir e queria ver mais», acrescenta Vasco, dos Jukebox, um dos participantes na competição vencida pelos 12 Macacos.

A insatisfação  social
Ainda assim, o hip-hop continua a ser muito estereotipado. «Das duas uma, ou és "morango com açúcar" ou és bandido», critica Alex, dos 12M. «A televisão vende o hip-hop como um estilo de vida cool e trendy e muitos que nem sabem de hip-hop deixam-se influenciar. Existem miúdos brancos de colégios a tratarem os amigos por niggas... Agora, isso não reflecte o que é na realidade este movimento», acrescenta o DJ Kamala.
Na origem do movimento está a insatisfação face à sociedade, com base nos graffiti por exemplo, que continuam a ser malvistos. «E hão-de ser sempre, pois o puro graffito é ilegal, é raw, é contra a sociedade, é underground, é mesmo para provocar dano. Era a forma expressiva de intervenção contra os malefícios da sociedade», acrescenta Atsok, writer da crew.
«Já não pinto carruagens, nunca fui de pintar monumentos, mas se tiver de o fazer faço, pois estes aumentos de impostos, por exemplo, só nos fazem mal a nós, "povo". Todos calam e ninguém faz nada, mas em casa reclamam e depois os governadores fecham ruas para poderem passar nos BMW ou Benz... Temos de intervir de alguma forma», defende, lembrando que apesar de tudo ainda existem os «candy graffiti de que a sociedade gosta e em que investe... pois infelizmente é assim que se distrai o resto da sociedade... com candies [doces]».
Mas no fundo, no meio de tanta crítica, a verdade é que vai havendo quem genuinamente goste. «O hip-hop é visto como uma cultura urbana, mas as massas consideram-no algo pouco profissional. Há hoje em dia gente que acha que o hip-hop é street e feio, mas há também muita gente que o vê como street mas uma arte bonita», conclui Vasco.

Mulheres num mundo de homens
Em 2006 nasciam as Butterfliesoulflow. A crew feminina é composta por Piny, Leo (ambas também Jukebox) e Baronesa (que está a viver em Paris). «Dançávamos juntas, saíamos à noite para as festas e cada uma tinha as suas paixões dentro do hip-hop, b-girling, popping, new style, a música, os graffiti», conta Piny. A crew é bastante completa tendo também as vertentes de DJ e writer, além do b-girling.
Mas como se sentem estas meninas entre os homens? «Na dança o b-boying é maioritariamente masculino, o que não faz, nem nunca fez, que fôssemos discriminadas por sermos mulheres. Se nos dedicamos com a mesma intensidade e paixão, só podemos obter respeito», acrescenta.

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