Hayao Miyazaki
Ao contar esta fábula não resiste, como sempre, a uma certa complexidade temática. Essa é uma das suas marcas…
O mundo também não se explica de forma simples. Criei este filme para crianças de 5, 6 anos. As crianças com essa idade reflectem sobre o mundo e têm muitas questões. Maravilham-se com enigmas que não sabem ainda resolver. Penso que tudo isto está neste filme e as crianças vão compreender. Por muito que pareça inacreditável, uma criança de 5 anos tem uma perspectiva sobre o mundo, sente o destino do mundo… a única diferença é que não consegue exprimir isso por palavras. Ninguém pode subvalorizar uma criança de 5 anos.
Ao fazer um filme sob o ponto de vista de uma criança de 5 anos pensa que os adultos poderão ter mais resistência a entrar neste maravilhoso mundo?
Volto a dizer, se uma criança percebe o mundo aos 5 anos, os adultos também. Acho que os adultos vão conseguir perceber este filme [risos]. Certos filmes são feitos de forma defeituosa, subestimando o intelecto das crianças.
Ao longo de tantos anos como é que consegue nunca se repetir?
É um mistério. Gostava de saber como encontro sempre uma nova frescura. Isso cabe aos historiadores do cinema! A minha tarefa é fazer filmes que agradem, antes de mais, ao meu staff. São eles que trabalham comigo.
Sabe que certos artistas caem na armadilha da autocitação…
O que é preciso é trabalhar no duro. Nunca olho para trás para ver o que resultou bem ali ou acolá. O truque é olhar sempre para a frente e continuar jovem. Quando estou a fazer um filme esqueço tudo o que fiz antes. Neste momento, já estou quase a esquecer-me do que fiz em Ponyo à Beira-Mar… É por isso que não gosto muito de ver os meus filmes nos festivais! O passado é o passado.
Será algo intencional a mistura de experiências dramáticas que a sua arte cinematográfica convoca? Pensa muito nisso na altura da criação?
Depende daquilo em que estou interessado naquele período. Com Ponyo à Beira-Mar tinha que ver com o mundo submarino. Tenho é muito prazer em ter liberdade para misturar todos os meus interesses no momento.
Há alguma maneira de conseguir justificar o seu processo de fantasia? De onde vem todo esse vendaval de fantasia?
Para começar, pego numa imagem. Numa só imagem. Nessa altura, não sei como se desenrolará a história. Vou de ilustração em ilustração. Penso sequência a sequência. Funciona como um puzzle. Por vezes há peças muito importantes e eu não as consigo conjugar com as outras. Nesses casos, guardo-as numa caixa diferente. Tudo isso tem de estar incluído num estilo específico de animação, claro. Seria muito mais fácil se pudesse pôr tudo o que me agrada. Depois, há pormenores que parecem insignificantes mas que têm de lá estar. O que é menos interessante nesse processo é eliminar o que não cabe. Outra coisa importante é saber o que acontece no canto direito do ecrã. E também o que acontece no canto esquerdo. Será que tenho de desenhar uma grande nuvem sempre!? Tudo isto é composto por intuições – algumas delas não as compreendemos. O importante, para mim, é que as crianças sintam e não necessariamente que compreendam. Por exemplo, para pôr coisas que não são muito lógicas recorro à magia…
Já agora, quais as primeiras imagens que vieram à sua imaginação quando criava este filme?
Passou pelo segmento da tempestade no mar, um barco à procura de um farol e alguém a olhar num precipício. Houve também a ideia de um menino a abrir uma porta e a ver um barco no mar… Começo sempre assim por ideias vagas.
É verdade que se inspirou em A Pequena Sereia?
Digamos que nunca percebi como é que poderia haver uma sereia e ela nunca conseguir chegar à costa. Esse mistério ficou na minha cabeça durante anos e anos. O mito da sereia nunca foi, para mim, um conto maravilhoso, mas sim uma história triste que nos parte o coração. A verdade é que criei este filme de forma inconsciente, apesar de ter começado por pensar muito. O conceito veio de dentro de mim. Sinto que a história já estava na minha alma há muito tempo…
E essa história passa por uma exploração dos mitos japoneses relacionados com o mar?
Passa mais por um dos animadores ter tido um filho durante a preparação. Esse bebé foi como que a chegada de Ponyo. Para mim, aquela criança era um bebé-peixe! E o interessante é que o sentido de paternidade desse meu colaborador foi transposto para o filme. À medida que o filme foi avançando essa criança foi crescendo e ganhando consciência do seu corpo, tal como acontece com Ponyo.
Julgava que me iria responder que quis explorar o tema da ecologia…
Sabe, quando Ponyo corre sobre as ondas sinto que, sem querer, estava a inspirar-me em antigas pinturas japonesas com crianças a correr sobre o fogo. O segredo para conseguirmos estar longe da animação computorizada é podermos ter esta completa liberdade.
Será que é um filme acessível para as plateias ocidentais?
Não sei mesmo responder a essa pergunta, mas penso que sim. Existem ideias e conceitos que são comuns aos ocidentais. O que se passa é que nem todos acreditam na magia. Felizmente, as crianças e os velhos conseguem interagir muito bem. Por isso, nos estúdios Ghibli temos um infantário. Estão lá nove bebés neste momento. Esses bebés deixam-me muito feliz. Devo então dizer que sim, que os bebés e os velhos ligam muito bem.
Tem algum sonho mágico para o futuro dos estúdios Ghibli?
Tenho de dizer que vivemos sempre sob risco. Cada filme encerra em si um enorme capital de risco, mas se quisermos garantir a nossa sobrevivência económica cada vez que criamos um filme as coisas podem dar para o torto. Estes filmes não são baratos, não o podem ser! Temos de investir. E, claro, manter o infantário [risos].
Pelo menos no Japão, os seus filmes fazem sempre muita receita…
Para este cheguei a estar preocupado. Falando a sério, claro que acho que podemos sobreviver… No começo de cada produção vemos até onde queremos ir. Tentamos sempre equilibrar as coisas. A nossa maior limitação é o tempo. A grande questão está em estabelecer o prazo para o fim da produção. E a regra é nunca desrespeitar a deadline. Assim, em cada dia tentamos trabalhar o máximo. Para Ponyo à Beira-Mar digamos que o plano de produção não foi assim tão apertado. Isso ajudou imenso. Ainda assim, a minha teoria é que quanto menos tempos tivermos melhor sairá o filme.
O que o interessou tanto na relação entre a mãe e o filho?
Quando uma criança vive rodeada apenas de adultos fica limitada. Queria também explorar a questão das crianças que são mimadas por estarem sempre sob a alçada dos pais. Essa é uma questão complexa. Nunca há apenas uma resposta. Sinto que é muito interessante debater a questão da autonomia das crianças. Entre nós, nos estúdios Ghibli, houve intensas discussões sobre os limites da responsabilidade paternal.