Famílias
Com a discussão da co-adopção por casais do mesmo sexo lá veio o relambório do costume sobre a crise da família, da comunidade e até da sociedade ocidental. Nada de novo: a despenalização da interrupção voluntária da gravidez punha em causa a família e o casamento entre pessoas do mesmo sexo destruía a instituição casamento em geral. A depravação total estava já ali ao virar da esquina. Claro está que toda esta dissolução dos costumes vinha na sequência de coisas tão vergonhosas como os métodos anticoncepcionais, do sexo antes do casamento, do divórcio, ou de homossexuais poderem aparecer na rua de mão dada com o seu namorado ou namorada. As sociedades ocidentais, onde estes escândalos todos vão acontecendo, estariam a sofrer terríveis atrocidades com esta corrosão social: o deboche supostamente instalado e até a queda demográfica teria origem em todas estas barbaridades.
Presumo que quem defende que vivemos praticamente em Sodoma ou Gomorra pense que as pessoas não têm filhos por estarem mais ocupadas a organizar bacanais ou se divertirem a fazer abortos quando não estão a consumir drogas. Nada que ver, claro está, com as mudanças no papel da mulher na comunidade, ou alteração na estrutura económica e social das comunidades - e sim, claro que há neste momento melhores condições para ter filhos do que há 40, 50 ou 60 anos, mas a discussão nunca foi essa. Ou que a instituição familiar funciona lindamente nos países com um actual elevado crescimento populacional. Países onde os números do abandono parental ou as famílias monoparentais são, digamos assim, bastante significativos.
Não tenho muita paciência para a delirante discussão sobre a imaginária degradação moral do Ocidente e de esta se estar a dar na sequência duma suposta conspiração de depravados, perturba-me porém a repetição constante da mentira da crise da família e da perda dos valores familiares. E perturbam-me não só porque as teorias da conspiração me aborrecem, como penso que leis como as que permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou as da co-adopção por casais do mesmo sexo contribuem sim para aumentar o prestígio da instituição familiar e o seu papel como célula fundamental da comunidade.
Também sou daqueles que pensam que a família é a célula fundamental duma comunidade. Que acredita que os laços criados no seu seio são os mais sólidos e os mais profundos. Que é insubstituível e a mais perfeita construção social.
Um núcleo feito de afectos e cumplicidades, de solidariedade e altruísmo.
Falar sobre a família é como falar sobre a nossa própria essência e não consigo imaginar nada mais difícil.
De facto, as famílias felizes são todas muito parecidas, como dizia Tolstoi, mas apenas os resultados são parecidos, diria até iguais. O modo como são estruturadas, a forma como os seus membros interagem, a maneira de funcionar são diferentes de caso para caso. Diferenças, em alguns casos, subtis, noutros casos enormes. Todos conhecemos famílias chamadas tradicionais que de família só têm a aparência formal, transmitindo tudo menos os valores que associamos à instituição, como na nossa vida convivemos com famílias não tradicionais que são autênticos bastiões daqueles valores familiares.
Tentar definir a instituição familiar através dum papel estereotipado dos seus membros faz tanto sentido como confundir progenitores com pais ou mães.
Ser pai ou mãe vai muito para lá do acto da concepção, tal como ser parte duma família vai muito para além da utilização dum apelido comum. Em termos muito simples: fazer um filho qualquer um faz, ser pai ou mãe é outra coisa. E basta que o leitor seja pai ou mãe ou filho para que não sejam precisas grandes explicações sobre o sentido da expressão.
Uma criança com dois pais (ou duas mães) não precisava duma lei para poder chamar pai de facto aos seus pais e consegue distinguir, como qualquer outra criança, o papel de cada um na sua vida. Para essa criança e para os pais pouco muda. Mais uma família feliz parecida com todas as outras felizes ou infeliz à sua maneira como as famílias infelizes.