Falcoaria
A profissão exige-lhe o dever de sentir a liberdade e o céu como limite. Gosta de inverter os provérbios populares e dizer que os pássaros nunca podem estar na mão, mas sempre a voar.
Carlos Crespo é o homem dos falcões na Coudelaria de Alter-Real, na vila alentejana de Alter do Chão, onde as paixões se transformam nas rotinas que se batem pelo esforço, perseverança e muita paciência. «Um falcoeiro tem de estar disposto a pagar com “uma vida de penas”, uns efémeros momentos de glória!», afirma, ao explicar o perfil pretendido de quem quer abraçar uma vida ligada à arte da falcoaria e, como diz, «às coisas simples da vida, como os animais e o campo».
A primeira ave de presa teve-a aos 16 anos, e desde então nunca mais parou. Do Alto Alentejo traçou origens e o laço profundo com a natureza que se tornou contadora de histórias da sua infância. «A fauna silvestre, e as aves de presa em particular, fascinaram-me sempre. Esta paixão foi muito influenciada pela carismática figura de Felix Rodriguez de La Fuente, falcoeiro, cineasta e naturalista espanhol, autor da célebre série televisiva sobre a fauna ibérica O Homem e a Terra, cujos episódios eu devorava avidamente durante os anos setenta», conta. Também o filósofo espanhol José Ortega y Gasset se tornou, para Carlos, uma referência sobre a caça e as tradições rurais, motivando a compreensão simples das leis da natureza, da vida e da morte dos bichos. Por arrasto, seguiu-se a filiação em associações internacionais e o contacto iminente com falcoeiros de renome e criadores estrangeiros, o que lhe possibilitou expandir conhecimentos, desde as Terras Altas da Escócia aos desertos do Médio Oriente.
Hoje, passados quase vinte anos, os falcões, as águias, as corujas e os bufos-reais continuam a persegui-lo como se de uma presa se tratasse. Quanto a Carlos Crespo, resta-lhe observar e aprender com os protagonistas desta arte tão nobre quanto milenar. «Adorada por uns, odiada por outros, a falcoaria atravessou milénios de história, mas nunca foi algo massificado. Também nunca terá constituído uma actividade de subsistência, nem consta que tenha sido praticada com o simples intuito de obter alimento para consumo humano. Foi sempre uma nobre tradição ao serviço do lazer», afirma, e inspirando-se em La Fuente, também Carlos celebra a falcoaria como «a mais livre e espectacular aliança alguma vez estabelecida entre o homem e o animal selvagem».
Voar em equipa
As escolhas reforçaram a vontade de alimentar a paixão, o hobby acabou por dar lugar à profissão, e nem mesmo a licenciatura em Ciências Históricas lhe refreou o caminho por entre os baixos e os altos voos que costuram destinos entre homens e animais. Em Alter do Chão, desde 1997 que Carlos Crespo é o responsável pela unidade de falcoaria, onde as demonstrações de voos ao público estão incluídas na visita à coudelaria. São momentos de rara beleza que encerram uma aliança singular entre as aves e os treinadores, fortemente construída num dia-a-dia exigente, em que as rotinas se transformam em laços únicos e especiais. «O tempo é talvez o preço mais alto a pagar por aqueles que se dedicam a esta actividade. Gosto pelo ofício, sensibilidade, pedagogia e infinitas doses de paciência e dedicação são alguns dos ingredientes necessários para quem quiser ser aspirante a falcoeiro», volta a frisar Carlos, e cita Francesco d’Arcuccia, um célebre falcoeiro do século XVI: «Nem todos nasceram para os belos voos, também não é de todos o saber e o poder fazer.»
Mas apesar de não estar ao alcance de todos pelas condições que exige, José Maia e Nuno Mimoso, os dois perto da casa dos 30, e Pedro Barradas, de 21 anos, são três jovens para quem a falcoaria pode ser um caminho profissional a seguir.
São os falcoeiros em aprendizagem que, juntamente com Carlos Crespo, garantem o funcionamento diário deste pequeno centro. «Todos os colaboradores foram meus discípulos e receberam formação específica na área da falcoaria durante três anos na Escola Profissional Agrícola de Alter do Chão», explica: «Para além destes colaboradores, a falcoaria conta com assistência médico-veterinária e recebe estudantes em regime de voluntariado.»
Aliança tornada rotina
O dia começa cedo na falcoaria, onde a tarefa principal é garantir o bem-estar de cada animal. As primeiras horas são dedicadas à limpeza geral das instalações, e trata-se de todas as questões relacionadas com a higiene das aves, limpeza e desinfecção de materiais e equipamentos. A seguir, é tempo para os animais se alimentarem, numa operação que merece toda a atenção possível, pois a dieta de cada ave é rigorosamente controlada e constituída exclusivamente por carnes frescas, previamente arranjadas e depois enriquecidas com suplementos minerais e vitamínicos. Todos os dias, é feito um check-up geral às vinte aves do centro onde, quais atletas de competição, os falcões são pesados e a sua condição geral é registada. Depois são tapados com caparões – uma espécie de capacete que serve para os proteger e acalmar –, colocados em poleiros próprios e transportados tranquilamente para o campo, onde «são voados» em absoluta liberdade. «Uma a uma, cada ave é sujeita a um período de exercício em voo livre e ao fim é recolhida na luva e alimentada pelo tratador», explica o falcoeiro. Tal como acontece com todos os desportistas, os treinos diários são fundamentais para manter a condição física e psicológica das aves. Consoante as épocas do ano, os treinos ajustam-se ao calendário biológico das aves. «Se durante o Inverno as actividades de campo se distribuem ao longo de todo o dia, já no Verão têm de começar muito cedo para evitar o excessivo calor. Ao longo da Primavera/Verão, as atenções da equipa centram-se na reprodução em cativeiro, na incubação, nos cuidados especiais durante o período da muda da pena, a alimentação e desenvolvimento das crias, o treino e iniciação na caça», explica Carlos Crespo, que pede maiores apoios e incentivos «para poder ampliar as instalações do centro, bem como facultar informação multimédia aos visitantes na exposição permanente e melhorar o programa de reprodução de espécies em cativeiro, numa tentativa de garantir a continuidade deste desporto tão único quanto especial». Refere ainda que em Portugal, há um longo caminho a percorrer «numa área que constitui um instrumento de grande importância para a conservação de espécies raras ou em perigo de extinção», conclui.
Para já, o público que visita a Coudelaria de Alter-Real às terças, quintas, sábados e domingos, pode assistir aos treinos e até mesmo experimentar a sensação de ter uma águia ou um bufo-real poisado no braço. A nm garante emoções fortes!
FALCOARIA NA COUDELARIA DE ALTER-REAL
As visitas são guiadas e o programa inclui as Casas Altas, a eguada – entrada e permanência na cavalariça e saída para o campo –, a exposição de falcoaria, a visita ao Pátio D. João VI (Cavalariça Alter-Real), bem como as actividades de desbaste e testagem, o depósito de garanhões reprodutores, a casa dos trens e o Museu do Cavalo. A visita dura cerca de uma hora e meia e os preços variam até aos quatro euros. As crianças até aos 11 anos não pagam. Convém marcar. Te.: 245610060; e-mail: CRI@AlterReal.pt
Coudelaria Alter-Real
A6 saída Estremoz
EN 245 Sousel, Fronteira até Alter do Chão (seguir as indicações para a coudelaria)