Conselho de direitos humanos
Acimeira mundial de Setembro de 2005 não foi tão convergente sobre o ambicioso programa de reforma da ONU, que o secretário--geral empenhadamente propôs aos Estados membros, quanto o cuidado da imagem pretendeu.
Mas é de sublinhar a persistência e convicção com que o responsável pela iniciativa ensaiou deixar bem definido e consolidado o legado do seu pensamento criativo sobre o futuro da organização e a paz no mundo.
Está seguramente a ser avaliado, em cada dia, a partir de um ponto de vista da contagem final do tempo que o mandato lhe concede. E também consciente, com serenidade, da atitude distanciada dos EUA, a cujo unilateralismo não concedeu nem apoio nem benevolência, sobretudo quando os EUA não dominaram uma manifestação de impaciência directiva.
Se o esforço desenvolvido no sentido de impor o conceito de autoridade unipessoal, com dignidade igual aos Conselhos da ONU, foi constante ao longo do mandato, também é certo que agora resiste com frieza às tentativas de envolvimento em discutíveis e criticáveis desmandos, dos quais apenas não conseguirá livrar-se dos efeitos colaterais.
Do programa da cimeira conseguiu-se que, na Assembleia Geral de 15 de Março, fosse criado o Conselho dos Direitos do Homem, que substitui a velha Comissão de Direitos do Homem.
É sabido que os três pilares da ONU são a paz e segurança, o desenvolvimento e os direitos humanos, mas as leituras não são coincidentes em todas as áreas geográficas em que o costume foi dividindo o mundo representado na organização.
Para este novo organismo, os 47 membros dividem-se entre África (13), Ásia (13), Europa do Leste (seis), América Latina e Caraíbas (oito), Europa ocidental (sete), esperando-se que unidos pelo denominador comum que o Presidente Jan Eliasson pretendeu explicitar nesta síntese: "Não se trata de um problema Norte-Sul, devendo a Declaração Universal dos Direitos do Homem ser aplicada universalmente", insistindo no "multilateralismo" e na exigência da acção "em conjunto".
Como de regra, estas referências significam resistências encontradas no processo, e neste caso a reticência mais significativa foi expressa por Cuba, que não omitiu a sua crítica mais frequente: tratar-se-á de um texto desequilibrado, "reflexo negativo de um mundo unipolar? submetido à lei do mais forte".
Os EUA, como é hábito, foram os principais destinatários da crítica, tendo em vista um afirmado distanciamento do projecto com expressão na defesa da regra dos dois terços para a eleição dos membros, que tornaria mais difícil o acesso de países que não respeitem os direitos do homem.
Não é apenas nas assembleias nacionais que este peso dos antagonismos embaraça as convergências a favor do interesse geral, mas é certo que neste caso foi largamente manifesta a esperança de se ter dado um passo importante a favor da criação de uma sociedade sem medo, uma feliz expressão de um lúcido pensamento matricial que tem em vista a pacificação das sociedades civis vítimas de lutas internas, e a sociedade internacional semeada de ameaças e confrontos.
É evidente que o antiamericanismo é o dinamizador mais saliente das reservas emitidas, que, todavia, não impediram a aprovação, assim como as reservas dos EUA, que não aprovaram o texto, não impediram a declaração de que "cooperarão com os outros Estados membros para que o Conselho dos Direitos do Homem seja tão forte e tão eficaz quanto possível". O mais significativo e promissor é pois o facto de as reservas emitidas, e que correspondem a antagonismos muito fortes, não terem impedido que as atitudes finais fossem de comprometimento com os objectivos do novo órgão e de promessa de colaboração. Porque é na acção que a legitimidade se ganha, esta convergência anuncia uma plataforma credível para que o programa se concretize, uma condição necessária para que os manifestados antagonismos se apazigúem.
A União Europeia, que não foi excluída das críticas cubanas, apoiou fortemente a decisão, e não deixou de insistir no tema de que a legitimidade se ganha na acção. A síntese da inovação está em que a dignidade dos homens e dos povos não pode ser instrumentalizada a favor de hegemonias externas, quer políticas quer económicas.
As falhas da governança mundial, a violência do terrorismo global, as carências e as epidemias, a natureza em revolta, tudo apoia a urgência de atender ao legado e à invocação. É um valor que exige às soberanias contenção e serviço, a favor de um mundo sem medo.