Parece que já não me lembrava de como se comporta o Melville pelo dia fora. Fui buscá-lo ontem, após três noites no hotel para cães, onde o instalara de modo a podermos receber uns amigos lisboetas sem traumas demasiado profundos, e quase estranhei a sua força - a do seu corpo como a do seu ânimo.
Durante quatro dias, limitáramo-nos à Jasmim. Eles adoraram-na. Passeámo-la sem trela, entre as criptomérias. Limpámos as suas patas redondinhas. Sentámo-nos a comer, enquanto ela se enroscava aos pés de um e outro. Pusemo-la no jardim, a tratar da higiene, e quase nos esquecemos dela.
Ontem fui apanhar o Melville. Veio lá de dentro destravado, a derriçar o Henrique, e atropelou-me na hora. Intrigou-se com as tartarugas, detectou o cheiro dos Yorkshires, e não havia coisa que não o deixasse entusiasmadíssimo. Chegou a casa, estrafegou a cadela de mordidinhas e hoje começou tudo de novo, durante a caminhada - cada gato um inimigo, cada borboleta um pitéu.
Foi sempre assim. Uma vez pôs-se a estudar o cubículo do hotel, meteu a pata através das grades, levantou a taramela e andou a passear-se pelos telhados, capeando a malta. Outra, na clínica do Luciano, saltou um canil de dois metros tão sem balanço ou apoios que, quando eu cheguei, o Luciano trazia uma foto no telemóvel:
- Não vais acreditar!
É um misto de Houdini e Javier Sottomayor, o meu cão. Todos os dias me arranja uma reparação para fazer. Deixo-as para quando não volto da caminhada com esta dor no braço.
Mas ainda esta manhã abri a porta entre o corredor e a sala, e ele correu para a sua garota, e ela correu para ele, e os dois fundiram-se nos seus intermináveis beijos matinais. Agora estão os dois ali, um no sofá e outro no tapete, olhando-se ao crepitar da salamandra. Como poderia algum deles ser de outra sorte e continuarmos todos igualmente felizes?