Belgais
Maria João Pires é uma das maiores pianistas vivas em todo o mundo. Num país onde as artes, e a música clássica em particular, são pouco menos que desprezadas, esse é um feito enorme.
Portugal só pode ter orgulho nesta portuguesa notável. Apesar de a sua carreira sempre ter sido maior que o país - dos discos aos concertos, culminando na consagração, tudo se passou lá fora. Nas artes, no futebol, nos negócios, na política, até, quase sempre é preciso emigrar, passar uma temporada lá fora, para que o talento ou o valor sejam universalmente reconhecidos cá dentro. Mas Maria João Pires não parte em busca de consagração. Parte magoada pelos "malefícios" de um país onde se sente torturada. Um mal-estar que se tornou insistente nos últimos anos e que se terá tornado insuportável mais recentemente.
Exclua-se o facto de a pianista ter tido, ainda há pouco tempo, problemas de saúde que talvez aconselhem algum descanso. Fiquemo-nos pelo valor facial das suas declarações.
Em causa parece estar o desencanto com a falta de apoios ao centro de artes e estudo que criou numa zona do interior do país.
É triste que Maria João Pires deixe o país. Mas é ainda mais triste que o faça nestas circunstâncias.
Porque uma coisa é a Maria João Pires pianista e outra, bem diferente, é a animadora cultural que julga ser, ou a empresária que, na verdade, era ou deveria ser.
O Estado tem obrigação de apoiar a criação ou a fruição culturais, nem que seja para se redimir das culpas de omissão educativa acumuladas ao longo de séculos, ou pelo saudável princípio de democratizar a produção e o acesso à cultura.
Esse espírito terá estado na base do acordo que permite a manutenção em Portugal da colecção Berardo. Mesmo com as reticências colocadas pelo Presidente - ou outras mais fundas -, o Estado parece ter encontrado um equilíbrio razoável entre os vários interesses em causa. O mesmo terá acontecido, ao longo de anos, com vários poderes, com Belgais. A iniciativa meritória de Maria João Pires de levar o ensino das artes às crianças e ao interior mereceu vasto e concreto apoio.
Mas trata-se de um projecto privado, que deve ter pés para andar ou procurar, na sociedade civil, os apoios necessários. Uma coisa é o Estado apoiar, como tem feito; outra, bem diferente, será ficar herdeiro de iniciativas casuísticas e voluntaristas.