Avós
«Sempre desejei ter mais filhos, como a minha mãe, mas...» – a avó do André hesitou, sem saber se haveria alguém disponível para aquela conversa. Olhou para o lado e deve ter achado que sim – «só tive a mãe do André... » – nova hesitação – «e o André é no fundo o filho que eu nunca tive.»
A mãe do André era filha única. Mas aquele momento, em que estava sozinha, sem a filha, abriu as portas para que aquela senhora pudesse confidenciar algumas das angústias que lhe iam na alma: «É por isso que gosto tanto de ficar com ele, e a minha filha não entende. Ela é a mãe, eu sei, e não lhe quero roubar isso, mas não consigo deixar de lhe dar conselhos porque gostava tanto que este menino fosse meu...»
Descobri que, em pelo menos trinta anos, nunca aquela mulher tinha sentido, da parte de quem quer que fosse, um momento em que pudesse desabafar e exprimir a sua angústia: o sentimento maternal não cumprido, mesmo que, racional e logicamente, soubesse porque não tinha tido mais filhos. Disse-lhe: «Posso tentar perceber o que está a passar, porque sei pela ciência que as mulheres continuam biologicamente a ser programadas para ter muitos filhos. Não se arrependa nem culpabilize pelas suas opções. Tomou as que devia no momento em que as tinha de tomar. Não deixe pois a Dona Culpa introduzir-se na sua cabeça. Mas que tenha pena de não ter tido mais filhos e que a vontade de tratar o André como se fosse esse filho que não teve, se quer que lhe diga, acho que é um sintoma de amor e de saúde.» Ela sorriu: «Acha que a minha filha percebe isso?» «Percebe, se falar um dia com ela, de mulher para mulher, sem mais ninguém ao pé, se calhar numa esplanada, sem o relógio a mandar, e lhe disser tudo o que em tão poucas palavras acabou de me transmitir. Se fez isso comigo, imagine o que pode dizer à sua filha, e se calhar ela está à espera que lhe diga isso mesmo.» Voltou a sorrir e olhou ternamente para o neto, com uma expressão de avó feliz. De avó…
É demasiado tentador e torna-se difícil de evitar. Quando não se esgotou o sentimento maternal porque não se tiveram todos os filhos que se fantasiaram desde a infância, quando o estilo de vida é parecido com o das gerações mais novas, quando os que sempre foram «os nossos filhos» passam a ser «pais» (fazendo dos avós «pais de pais»), chamar a si a tomada de decisões e dirigir as operações é muito normal. Embora não possa nem deva ser, a realidade é frequentemente esta, associada ao facto de os avós serem necessários, designadamente em situações de SOS, como quando uma criança está doente e não se pode faltar ao emprego.
Esta questão coloca-se mais para as avós do que para os avôs. Porque da forma como a sociedade está organizada há menos indefinição de papéis entre as várias gerações do sexo masculino do que nas do sexo feminino. Para além disso, um homem (cá bem dentro do cérebro) está delineado para funções que pode exercer durante a vida toda, nomeadamente as que se relacionam com as crianças desta idade – entusiasmá-las, brincar, levá-las para o espaço exterior, ensinar a avaliação e o controlo do risco. Tudo isto pode ser feito pelos avôs de qualquer idade, com grande entusiasmo das crianças com menos de 6 anos. Para as mulheres (também dentro da nossa matriz genética), a «razão do ser» era e sempre foi ter filhos. E a chegada da menopausa e o fim da chamada idade fértil fazia passar as mulheres para um papel que era, justamente, o de tomar decisões na vida doméstica e familiar, sendo o local onde «mandavam». Ainda se pode verificar isto em algumas comunidades e etnias no nosso país.
Ou seja, aos avôs continua a ser dado um imenso espaço de manobra. Para as avós sobra pouco, a não ser darem a sua opinião. O conflito é mais com elas e, no caso de as mães se afirmarem relativamente aos assuntos dos filhos, deixa as avós com uma sensação de frustração. Curiosamente, mais tarde, já na idade escolar ou sobretudo na adolescência, as avós voltam a ter um papel muito grande, pois os netos já conseguem estabelecer com elas relações que fazem curto-circuito às mães. Nesta idade, entre os 12 meses e os 5 anos, tudo passa pelas mães, pelo que elas podem marcar o território, entrando-se em conflito.
Imaginem um caldeirão, daqueles grandes, pretos, com três pernas, que vão directamente ao fogo. Atirem-lhe lá para dentro um quilo de ansiedade, dois de isolamento, cem gramas de maior longevidade, três quartos de gerações cada vez mais próximas em idades e estilos de vida, mas também dois pés de gerações mais longínquas em distâncias reais. Um telefone, quatro telemóveis e uma pitada de e-mail. A colecção dos livros de Brazelton, a bíblia do Dr. Spock e uns livros meus, que não pensem que salto do barco quando me parece que está a meter água. E ainda todas as revistas sobre pais e bebés, desde o número um.
Seguidamente, deixem ferver e juntem 150 gramas de falta de tempo com duas réstias de complexos de culpa e a mesma quantidade de tentativas de compensação. Quatro dúzias de inexperiência com outras tantas de tentativa de meter o bedelho, cinco pitadas de instabilidade do poder parental, duas mãos-cheias de dúvidas e uma equipa inteira de profissionais de saúde que nunca estão onde ou quando são necessários, e que falam sempre de coisas que não são prioritárias.
Tempere-se com a imposição social de ser pais perfeitos e adicione-se, q.b., a obrigação de ser cidadão perfeito, cônjuge perfeito, amante perfeito, física e psicologicamente perfeito, intelectualmente perfeito e ainda pagador de impostos a horas, honestos e bem-educados.
Termine-se juntando o isolamento dos mais velhos, a falta de projecto de vida da terceira idade, ponham-se todos os filhos que as avós não tiveram mas que gostariam de ter tido, decore-se com telenovelas a granel, concursos onde se engolem sapos, futebol e reality-shows, apresentadoras bacocas e locutores que se esganiçam. Mexa-se tudo com uma enorme colher de pau – aprovada pela União Europeia – e sirva-se de preferência num apartamento onde o espaço vital não dá para viver, numa definição perfeita do que são «conceitos de vida letais». A prestações e com juros, tal como o carro, as férias, os fatos, e se calhar o amor, entre filas de automóveis e de hipermercados, variando criativamente entre quarenta horas de trabalho semanais, monotonamente iguais, uma reforma que tem tanto de inactiva como de retribuição económica miserável, e a consideração nostálgica e fisiologicamente difícil de engolir de que os nossos filhos já têm filhos...
Esta receita conduzirá a um prato explosivo. Mas é, infelizmente, o prato comum para muitos casais jovens. Os avós podem servir de fiéis da balança, equilibrar os condimentos, baixar o lume quando as coisas começam a pegar, deitar as pitadas necessárias de sal, bom senso, tranquilidade e apoio, e assim, com muito gozo, contribuírem para que o «caldo não se entorne»… a bem dos netos.