Assalto ao Santa Maria
Na madrugada de 22 de Janeiro de 1961, o paquete Santa Maria, o maior e mais luxuoso da Companhia Colonial de Navegação, foi tomado de assalto em águas internacionais, nas Caraíbas, por um grupo armado comandado pelo capitão Henrique Galvão, de 65 anos. Há meio século, foi o primeiro desvio de um navio de passageiros com fins políticos. Dois anos depois da fuga do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde estava em tratamento sob vigilância da PIDE, o antigo apoiante de Salazar - a quem terá dirigido a frase «Não te esqueças, meu manholas, que já te vi em ceroulas» - dava-lhe mais uma dor de cabeça, recordada ao pormenor por Pedro Jorge Castro no livro O Inimigo n.º 1 de Salazar, recentemente lançado pela Esfera dos Livros (ver página 54 desta edição).
A «Operação Dulcineia», como foi baptizada a tomada do Santa Maria, rebaptizado Santa Liberdade, foi levada a cabo por operacionais portugueses e espanhóis, membros do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), constituído por opositores aos regimes de Salazar e de Franco e liderado pelo capitão português e pelo espanhol Jorge Sotomayor. Criado na Venezuela, em Janeiro de 1960, o DRIL congregava exilados da União dos Combatentes Espanhóis e portugueses do Movimento Nacional Independente, chefiado pelo antigo candidato da oposição às eleições presidenciais de 1958, general Humberto Delgado.
Vinte dos elementos que participaram no assalto tinham entrado no barco a 20 de Janeiro, no porto venezuelano de La Guaira, na qualidade de turistas com o respectivo bilhete de embarque ou ludibriando os tripulantes que controlavam as entradas. Levavam armas escondidas. No dia seguinte, em Curaçao subiram a bordo outros quatro operacionais do «comando», entre eles Henrique Galvão.
O paquete navegava com 350 tripulantes e cerca de 600 passageiros, muitos deles americanos. Largara de Lisboa a 9 de Janeiro, com destino a Miami. A operação começou com a ocupação da ponte de comando, onde se registou o único incidente - uma troca de tiros na ponte, de que resultou a morte do terceiro piloto, Nascimento Costa, e o ferimento grave de outro tripulante. Mais tarde, a imprensa salazarista encarregar-se-ia de sublinhar que Nascimento Costa era um antigo graduado da Mocidade Portuguesa, a organização juvenil do regime.
Objectivo: Angola
Cedendo a razões humanitárias, os assaltantes rumaram à ilha de Santa Lúcia para permitir que dois doentes fossem retirados. Esse desvio e também divergências entre Henrique Galvão e Jorge Sotomayor alteraram o plano original. A «Operação Dulcineia» acabou por restringir-se à primeira etapa, a tomada do Santa Maria. Henrique Galvão, que se apresentava como delegado plenipotenciário do general Humberto Delgado, idealizara ocupar a ilha espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, e dali partir para Angola, onde promoveria uma insurreição generalizada contra as ditaduras ibéricas.
O carácter surpreendente do assalto ao navio foi ampliado por uma forte repercussão mediática internacional, nada conveniente para Salazar. O governo português tentou enfrentar o desaire com o argumento de se tratar de um mero acto de pirataria - mas a leitura política dos acontecimentos acabaria por ser favorável aos propósitos dos assaltantes.
Miguel Urbano Rodrigues, jornalista português exilado no Brasil (em Portugal seria director do jornal comunista O Diário, na segunda metade da década de 1970) e militante do DRIL, chegou ao Santa Maria numa traineira alugada, a 30 de Janeiro, e dali enviou telegramas para o jornal O Estado de São Paulo enaltecendo o carácter político da acção. Também Victor Cunha Rego, que viria a ser director do DN, chegaria mais tarde a bordo, tal como outros jornalistas de muitas e prestigiadas publicações internacionais, incluindo a revista francesa Paris Match e as americanas Life e Times, que aliás dão boleia a Humberto Delgado, então exilado no Brasil. O «general sem medo» subiu a bordo do paquete no dia 1 de Fevereiro, o décimo primeiro da «Operação Dulcineia».
Perseguição no Atlântico Sul
O derrube das ditaduras de Salazar e de Franco era o objectivo último e megalómano do assalto ao Santa Maria. Mas as coisas começaram a correr menos bem logo ao segundo dia, quando o paquete foi avistado por um cargueiro dinamarquês, que avisou a guarda costeira norte-americana. A chegada de navios de guerra não demorou e o rumo acabou por ser o Recife, no Brasil, depois de negociações com as autoridades norte-americanas e brasileiras, e de haver garantias de que a acção seria respeitada como um gesto político de oposição ao regime de Salazar - e não classificada como um acto de «pirataria internacional», como defendia o governo português.
Lisboa invocou as contrapartidas da NATO para pressionar os governos dos países aliados (como a França, Inglaterra e EUA) a agir contra os «piratas». A França não aderiu ao pedido, mas a Inglaterra e os EUA enviaram vasos de guerra e aviões para interceptar o navio sequestrado. Contudo, os protestos da oposição trabalhista pressionaram a retirada britânica. Kennedy, recém-empossado presidente dos EUA e apostado na mudança da política norte-americana em relação a Portugal por causa da questão colonial, não deu ordem de abordagem do navio. Nas mensagens transmitidas via rádio, especialmente dirigidas à opinião pública norte-americana, Galvão sustentava uma atitude de beligerância política e apelava à não ingerência de países terceiros. Foi o que aconteceu.
De 27 a 31 de Janeiro decorreram negociações entre o comando rebelde e representantes de Kennedy para o desembarque dos passageiros. Galvão ainda pretendeu que pelo menos parte da tripulação permanecesse no navio, para retomar o plano inicial da viagem para Angola, mas a indisponibilidade generalizada levou-o a desistir.
O Santa Maria permaneceu ao largo de Recife (Brasil), em águas internacionais, à espera de que o presidente brasileiro Kubitschek de Oliveira, desfavorável às pretensões de Galvão, cessasse funções. Após a posse do seu sucessor, Jânio Quadros, que não escondia a simpatia pela oposição portuguesa, Galvão recebeu a promessa de asilo político. A 2 de Fevereiro deu-se o desembarque dos passageiros e da tripulação. O dia seguinte culminou com a adesão dos assaltantes a um acordo com as autoridades locais para a entrega do navio ao Brasil.
Os olhos do mundo
Enquanto a acção durou, Portugal foi motivo de notícia nos meios de comunicação internacionais dos EUA, do Brasil e da Europa. O desvio do paquete aumentou a consciência da opinião pública mundial quanto à natureza da ditadura portuguesa.
«Vamos arrepender-nos mil vezes, é muito mais perigoso do que Delgado» - tinha dito Salazar dois anos antes, quando cedeu às pressões para autorizar o exílio de Henrique Galvão na Argentina, após a evasão do Hospital de Santa Maria. De facto, mal chegou a Buenos Aires decidido a prosseguir a luta, Galvão tratou de exilar-se na Venezuela por considerar que a Argentina não era politicamente o melhor país da América do Sul para servir de base às operações revolucionárias que tencionava levar a cabo.
A repercussão mundial do caso e o isolamento internacional a que o governo de Salazar se viu remetido já deixavam adivinhar, nesse Janeiro de 1961, o início de um annus horribilis para o regime. Mas, a nível interno, as «manifestações de desagravo» organizadas pela Legião Portuguesa e pela União Nacional animavam o velho ditador. No dia 14 de Fevereiro, quando o navio regressou ao cais de Alcântara, em Lisboa, disse, com a voz embargada: «Temos o Santa Maria connosco! Obrigado portugueses.»
E do céu choveram panfletos...
A 10 de Novembro de 1961, o Super Constellation da TAP Mouzinho de Albuquerque descolava de Casablanca, em Marrocos, com destino a Lisboa. Eram 09h15 e a viagem, de cerca de hora e meia, prometia ser calma. Mas entre os 18 passageiros seguiam seis operacionais contra o regime, chefiados por Hermínio da Palma Inácio.
Era mais uma acção revolucionária gizada por Henrique Galvão e que também constituía uma estreia na história da aviação comercial: o desvio de um avião com fins políticos.
O plano era seguir para Lisboa, fazer voos rasantes sobre a capital e várias cidades do Sul do país - e lançar cem mil panfletos denunciando a farsa eleitoral marcada para daí a dois dias e apelando à revolta contra a ditadura. Depois era preciso voltar a Marrocos e aterrar em Tânger. O objectivo foi cumprido.
O comandante Sequeira Marcelino ainda tentou argumentar que o avião não tinha combustível para regressar a Tânger, mas Palma Inácio, que era mecânico de aviões e tirara nos EUA o brevet de piloto, exigiu os registos de voo e verificou que os tanques tinham sido atestados em Casablanca. Quando pôs dificuldades ao lançamento dos panfletos - «não posso abrir as janelas do avião» -, Palma Inácio calou-o: «Pode, pode. Voa o mais baixo possível, despressuriza as cabinas e abrimos as janelas de emergência.»
Os outros cinco elementos desta acção - Camilo Mortágua (veterano do assalto ao Santa Maria), Amândio Silva, João Martins, Fernando Vasconcelos e Helena Vidal - nem sequer foram obrigados a mostrar as armas. Já sobre Lisboa, e após dar meia volta sobre o aeroporto, o quadrimotor passou a muito baixa altitude sobre a estátua do Marquês de Pombal e a Baixa. Uma chuva de panfletos contra Salazar caiu sobre a cidade, e o mesmo aconteceu no Barreiro, em Setúbal, Beja e Faro.
A «Operação Vagô», assim denominada pelos revolucionários, mereceu honras de primeira página na imprensa internacional. Esse era o grande objectivo do cérebro do golpe, Henrique Galvão.