Animais
São oito da manhã quando começamos a subir a Canada da Serra. Hoje o céu acordou desanuviado, com a limpidez feérica que sempre faz suceder aos longos dias de chuva. E, antes mesmo de chegarmos às charolesas do Zé Maria da Adega, há dois cerrados com angus e ramo-grandes dispostas como que num xadrez, muito pretas umas, vermelhíssimas as outras.
Pastam numa serenidade conformada, até feliz, mas a certa altura passamos na curva e duas delas erguem a cabeça, com um ar inquiridor. E eu pergunto-me: o que vêem os animais quando nos vêem passar? O que vê um bicho quando olha um homem? O que vêem estas bezerras destinadas ao matadouro quando passamos os dois, eu e a Catarina, com roupas desportivas e cães presos a trelas?
Conhecemos o que dos animais nos disse tanta literatura, mas em todos os casos o homem manteve-se no centro. A ratazana de Günter Grass, o cão de Paul Auster, até a baleia de Ahab - todos eles existiram primeiramente em função de nós. A quinta de Orwell foi uma metáfora para a nossa sociedade. Os patos e os ratos de Walt Disney assumiram formas humanas.
Mas alguma coisa eles hão-de ver quando nos olham. Continuará o homem no centro do planeta? Continuará o Sol no centro do sistema? O que serão a dor e o prazer, exactamente? E o desejo, e a humildade, e o medo, e a melancolia? E essa fome sem remédio a que se chama poesia?
A ciência estuda os animais sencientes, prova-nos que eles podem sentir e garante-nos que esse estado não está tão distante do pensamento quanto isso. Mas que papel representa num encontro assim a consciência? Que curiosidade, que perplexidade há naqueles olhares? Sobretudo: o que vêem os outros animais quando olham os nossos cães e se apercebem de que eles vivem connosco, na nossa casa, segundo as nossas regras, comendo a nossa comida?