Os autocarros passam, o café está cheio de moradores a conversarem, as crianças correm pelas ruas, as mulheres continuam a sair de casa às 05.00 da manhã para trabalhar nas limpezas. E as obras públicas esperadas pelos moradores ainda estão por fazer.Este é um retrato atual do Bairro do Zambujal, três meses depois da morte de Odair Moniz e dos tumultos que se sucederam, como a vandalização de um autocarro em Loures, o que provocou ao motorista, Tiago, queimaduras graves em várias partes do corpo.O DN voltou ao bairro de que tanto se falou, na altura, para ver como está a situação hoje. “Agora que está tudo tranquilo já não vêm cá tantos jornalistas”, ironiza um morador no café mais movimentado do Zambujal, com mais de duas dezenas de pessoas na manhã fria e chuvosa de domingo. “Tranquilo”, aliás, é a palavra mais utilizada por aqueles que conversaram com o DN para descrever a atmosfera da zona.“As pessoas estão tranquilas, mas estão tristes”, resume Iolanda Furtado, funcionária da Santa Casa da Misericórdia da Amadora (SCMA), que trabalha diariamente no bairro, onde tam- bém mora a mãe. “Já não há a revolta daqueles dias, mas permanece a tristeza por tudo o que aconteceu”, explica a cuidadora. De acordo com a profissional, “tudo o que as pessoas querem é viver em paz”.. Tal como “tranquilidade”, “paz” é a outra palavra que permeia as conversas pelo bairro. “As pessoas estão em paz, entram no autocarro, são simpáticas. As pessoas aqui são pessoas”, diz António Monteiro, motorista de autocarro que faz a carreira pelo bairro quase todos os dias. O autocarro tornou-se uma espécie de símbolo para o bairro, sob duas óticas distintas: uma para quem lá vive, e outra para quem sabe do bairro pelas notícias - a imagem do veículo em chamas ficou na memória, eternamente registada em fotos, vídeos e diretos para a televisão. Por outro lado, durante cerca de três semanas as carreiras foram suspensas, o que causou uma série de constrangimentos aos moradores, em especial aos trabalhadores e estudantes. Os autocarros são o principal meio de transporte da localidade, sendo o regresso celebrado no bairro, pois é a demonstração de que o Zambujal está “tranquilo”. Ou seja, para muitos, se o autocarro passa normalmente, e garante a mobilidade para fora dos perímetros do bairro, está tudo “tranquilo”.“Sempre foi”Gilberto Pinto, presidente da associação Partilha, relata ao DN que ,“na verdade, o bairro sempre foi tranquilo”, mas que, por ser um bairro social e ter problemas como o tráfico, as pessoas veem tudo de forma negativa. “Tem problemas, mas outros bairros de Lisboa também têm. Tem venda de droga, mas outros locais também, e eu garanto que há outros bairros muito piores do que este. Aqui, no Zambujal, há muita gente trabalhadora, há muita gente que contribui para a economia, há muitas senhoras que trabalham nas limpezas em Lisboa, há gente também licenciada”, explica Gilberto, conhecido por todos como Beto. . Ao mesmo tempo, reconhece que, nos dias a seguir a morte de Odair Moniz, a quem chama de “Odá”, as pessoas ficaram “alarmadas, nervosas”, mas que, agora, “tudo voltou à normalidade”. De acordo com Beto, “ninguém concorda” com os tumultos que aconteceram, como incendiar o autocarro. “Ninguém concorda com aquilo, com tumultos, com violência. Garanto que a grande maioria das pessoas do Zambujal não se reveem nestes comportamentos, mas também tenho a certeza absoluta de que aquilo foi um grito de revolta, que não teve nada combinado”, argumenta o presidente da associação.Tal como outros moradores do Zambujal, Beto lembra com saudade o amigo. “O Odá era uma pessoa muito querida aqui na comunidade”, conta. “Ele dava conselhos às pessoas, conversava com os ciganos, oferecia gomas às crianças, era uma pessoa muito respeitada por todos e um grande suporte familiar”, detalha.A família de Odair tenta retomar a vida. O café do qual era dono foi reaberto recentemente. Na fachada já não estão os cartazes onde se lia “Odair Moniz não recebeu socorro”, “Justiça para Odair” e “Nunca será esquecido”, mas todos garantem que “nunca será esquecido”. Um dos filhos da vítima disse ao DN que estão “bem”, mas que preferem não conversar com jornalistas neste momento.Na visão de Beto, as circunstâncias da morte do morador causaram a “revolta na população” - Odair, nascido em Cabo Verde, foi alvejado por um agente da PSP que confessou ter disparado duas vezes após este ter resistido à detenção e por alegadamente ter uma faca. Mas há quem acredite que os protestos daqueles dias, que acabaram por espalhar-se para outras localidades da Grande Lisboa, não foram somente motivados por Odair ser uma pessoa querida no Zambujal.Um morador que nasceu e cresceu no bairro, e prefere manter o anonimato, assegura que o sentimento de revolta foi causado pela “vulnerabilidade” e a “forma como as pessoas nos veem”, além da atuação dos polícias. “Sempre chegaram com abordagens violentas, por isso os miúdos tem uma visão negativa dos polícias. Alguns chegam mesmo a ter medo, mesmo sem fazer nada, escondem-se de medo”, argumenta. Ao mesmo tempo, explica que o pensamento é uma reflexão do que vê e ouve pelo Zambujal e outros bairros sociais, mas que isto “não justifica”nenhuma violência. Além da morte de Odair Moniz, recorda que está fresco na memória outros casos, como o sequestro e agressão de seis jovens na Esquadra da PSP, em Alfragide, em fevereiro de 2015.Edgar Cabral, 29 anos, vice-presidente da associação Partilha e uma figura reconhecida e influente no bairro, também diz ao DN que os jovens “estão com medo dos polícias”. Cabral afirma que “algumas abordagens são violentas”, conforme relatos que chegam à associação. “São sobretudo jovens de 18, 19 e 20 anos que reclamam do facto de serem abordados com agressividade”, destaca o vice-presidente. Além desta preocupação, também frisa que o bairro está “na paz”, mas que os moradores “estão tristes e à espera de justiça” pela morte de Odair Moniz.A Polícia Judiciária (PJ) está a investigar o crime. Há também um inquérito na Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) sobre a atuação do agente da polícia que confessou os disparos. amanda.lima@dn.pt