Viver com demência pode ser mais ou menos positivo, depende de como se encara a doença
E se fosse comigo ou com um familiar meu? Como viveria a demência? As psicólogas Gabriela Álvares Pereira e Isabel Sousa escreveram um livro a quatro mãos sobre experiências diretas ou indiretas com a doença e a mensagem que deixam é simples: "Um diagnóstico não altera tudo no imediato e ajuda a planear o futuro."
A palavra assusta, por vezes, envergonha, e na maioria dos casos gera isolamento, mas não tem de ser assim. A palavra - demência - é, de facto, sinónimo de "ausência ou perda constante e progressiva da memória, podendo comprometer o pensamento, o senso ou a capacidade de se adaptar às ocasiões comuns e/ou sociais".
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Não é fácil receber um diagnóstico destes, mas "a experiência pode ser vivida de forma mais ou menos positiva, dependendo de como o próprio doente ou os seus familiares encaram a doença". Quem o diz são as psicólogas especialistas em Psicogerontologia e Neuropsicologia, Gabriela Álvares Pereira e Isabel Sousa, que avaliaram experiências diretas e indiretas sobre como é viver com demência e escreveram um livro a quatro mãos, com o título Viver com Demência, agora lançado e editado pela Ordem dos Psicólogos.
Aliás, como nos explica uma das autoras, Isabel Sousa, o desafio para esta obra foi lançado pela própria Ordem a ambas, pela experiência que têm na área da demência, quer do ponto de vista da avaliação e da intervenção, quer do ponto de vista dos doentes e dos cuidadores.
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O convite foi aceite e de imediato "o nosso objetivo e preocupação foi escrever algo diferente do que já estava noutros livros, uns mais destinados a cuidadores e familiares e outros mais técnicos, do ponto de vista médico. E como somos psicólogas quisemos escrever algo mais experiencial, sobre a vivência das próprias pessoas com demência, dos familiares, dos profissionais e da comunidade em geral, porque cada um de nós, de forma mais direta ou indireta, já conviveu com a demência", sublinha Isabel Sousa.
A demência está cada vez mais presente na realidade mundial dos dias de hoje. Portugal, por exemplo, de acordo com os indicadores dos últimos relatórios da OCDE, é o quarto país da Europa com maior número de casos de demência.
Por isso mesmo, Gabriela Álvares Pereira e Isabel Sousa quiseram "escrever um livro para toda a gente", um livro que tem por base uma análise e uma revisão extensa de toda a literatura já existente sobre como é "viver com demência", do ponto de vista do doente, dos familiares e cuidadores, dos profissionais e da comunidade que o rodeia.
O retrato é global e estende-se por cinco capítulos, sendo "o primeiro, aquele que diz respeito ao relato da experiência na primeira pessoa, talvez, o mais inovador", assume a psicóloga. E o que perceberam é que "a experiência de viver com demência é única, muito individual, tal como qualquer experiência. Pode é ser mais ou menos positiva, dependendo da forma como a sua família também a vive ou de como os próprios profissionais com quem o doente interage ou a comunidade em que está inserido a experienciam.
Por exemplo, se no meio em que o doente está inserido há mais preconceito e mais estigma, estes fatores irão influenciar negativamente a sua vivência com demência, e isso é igual para os familiares", alerta Isabel Sousa, sublinhando que uma das abordagens do livro tem a ver precisamente com a apresentação de "uma série de fatores que podem tornar esta experiência mais positiva".
Ainda há mitos e estereótipos que é preciso desconstruir
No entanto, assegura, "não tentamos dourar a pílula neste livro, porque um diagnóstico de demência é difícil, mas este também permite planear o futuro com a inclusão do doente".
Do que as autoras não têm dúvidas é que alguns dos fatores que ainda tornam a vivência com demência uma experiência negativa são os que estão associados ao estigma e ao preconceito, que geram, muitas vezes, "vergonha e o isolamento do próprio doente e das famílias. E estes têm de ser desconstruídos".
A psicóloga especialista em Psicogerontologia, com trabalho de mais de uma década junto da população com Alzheimer e dos seus cuidadores, confessa que, mesmo assim, "o estigma e o preconceito já foram pior", mas se ainda acontece é porque "há pouca literacia nesta área. Ainda há muitos mitos, suposições e estereótipos em relação à demência", acrescentando: "O mais gritante é que, segundo um relatório da organização Disease Alzheimer International, 2/3 da população mundial acredita que a demência faz parte do envelhecimento. Ou seja, que a partir de uma certa idade é normal as pessoas desenvolverem demência, quando não é assim. A doença é causada por outras doenças e deve ser entendida dessa forma".
14,8 casos por cada mil habitantes. Esta é a média da OCDE para a demência, mas a estimativa para Portugal é de 19,9. De acordo com o último relatório desta organização, o número de casos de pessoas com demência no nosso país subiu para mais de 205 mil, número que deverá passar para 322 mil até ao ano de 2037.
A pouca informação sobre a doença alimenta o estigma, que, por sua vez, "alimenta os estereótipos, de que a demência está associada ao envelhecimento ou à doença mental. E as pessoas com demência ou os seus familiares vivem muito este estigma, o que leva, muitas vezes, à vergonha, porque a pessoa com demência pode ter numa determinada fase em que desenvolve comportamentos diferentes, eventualmente mais estranhos ou mais alterados, que a comunidade não aceita, levando ao isolamento do doente e das famílias, para que uns e outros não sejam expostos".
E é isto que "é preciso desconstruir", reforça Isabel Sousa, citando que no capítulo sobre a experiência da doença na comunidade esta é uma das questões abordadas, porque também é preciso acabar com a forma que perpétua "as representações sociais negativas da pessoa com demência".
Neste aspeto, destaca, "a comunicação social tem um papel muito importante, no sentido em que pode ajudar a desconstruir o estigma da representação negativa da demência". Normalmente, "as pessoas são representadas já numa fase mais dependente da doença e não quando ainda estão na fase inicial e mantém muitas capacidades".
O livro Viver em Demência pretende ser um alerta para todas estas questões ao retratar "as experiências na primeira pessoa, para que assim seja mais fácil empatizar com o doente e mais facilmente nos consigamos colocar no seu lugar e pensar: "Se fosse comigo como é que gostaria de viver esta fase? O que gostaria que me fizessem?"."
A ideia do livro "é, precisamente, contribuir para a consciencialização da doença e para uma visão mais positiva da sua vivência, ajudando a desconstruir os estigmas e os preconceitos que ainda existem nesta área".
O diagnóstico não muda tudo no imediato e ajuda a planear
As psicólogas sublinham que um dos mitos mais graves "é o de que o diagnóstico muda tudo no imediato. A demência é uma doença neurodegenerativa, progressiva, portanto uma pessoa que hoje é diagnosticada com Alzheimer não é uma pessoa diferente da que era na semana passada ou no mês passado. É exatamente a mesma pessoa, porque a perda de capacidades pode levar anos".
E, hoje, os diagnósticos já são feitos mais atempadamente. "As pessoas procuram mais cedo a avaliação dos sintomas, há uns anos só procuravam quando os sintomas já eram demasiado evidentes e a demência já estava mesmo instalada, quando a pessoa já não tinha praticamente capacidade de decisão. O diagnóstico mais cedo permite tanto ao doente como à família procurarem ajuda para perceberem como é que a doença vai evoluir e o que os espera no futuro, podendo o próprio doente decidir como é que quer que a sua vida seja quando não puder tomar decisões e quem é que vai tomar essas decisões por si", argumenta Isabel Sousa.

Isabel Sousa (à esq.) e Gabriela Álvares Pereira foram convidadas pela Ordem dos Psciólogos para escrever um livro sobre demência.
© DR
Para a psicóloga esta primeira fase da doença é muito importante, porque se houver um planeamento permitirá que todos se "sintam acompanhados ao longo de todas as fases da doença e procurem o apoio e a informação necessária para lidar com cada uma dessas fases", porque, salienta, "o que a literatura nos diz é que falta muita informação e formação, até aos profissionais que prestam cuidados, sobre a demência e como lidar com pessoas que a têm".
A psicóloga exemplifica: "As unidades que acolhem estes doentes procuram dar formação aos profissionais, mas nem sempre os cuidados prestados são com base nessa formação e os cuidados de qualidade na demência têm de estar centrados na pessoa e o que sabemos é que, por exemplo em Portugal, a grande maioria das respostas sociais, nomeadamente em lares e centros de dia, não tem este tipo de abordagem na sua intervenção. Os cuidados estão centrados na tarefa, nas necessidades da organização, e não nos cuidados à própria pessoa, que deveriam ser individualizados."
A técnica reconhece que no nosso país "não estamos onde estávamos há dez anos, mas o caminho é lento e as mudanças também".
Mas se há uma mensagem que as autoras querem deixar à sociedade em geral é que "a experiência de viver com a demência pode ser mais positiva se todos os intervenientes tiverem uma atitude positiva. Se a família tem uma atitude de resistência, de raiva ou de vergonha esta atitude irá influenciar negativamente a experiência do doente. Se a família tiver uma atitude de aceitação, de integração e inclusão do doente este também se sentirá melhor".